quarta-feira, 24 de março de 2004

Ninguém aprende samba no colégio

O samba vive um momento privilegiado no que tange a visibilidade para o público em geral, o que implica em incremento do consumo (de discos, shows, rodas etc.) e conseqüente oferta de trabalho para músicos, autores etc. , salutar por todas as formas. Os que vivemos o dia-a-dia desse mundo, sabemos que assim foi em outras épocas, o que não impediu que sobreviessem fases de ostracismo e dificuldades. Com efeito, o samba nunca foi tratado pelos porta vozes a “oficialidade” como o patrimônio cultural fundamental do povo brasileiro que realmente é, muito pelo contrário. Aproveitam dele quando interessa e “dá retorno” depois encostam no canto até precisarem de novo, no melhor estilo “só na hora da sede é que procuras por mim” (salve Monsueto!). Afortunadamente, a fonte é tão caudalosa e arraigada no seio do nosso povo, que mesmo nos tempos de seca os cursos d’água minguam, mas não chegam a secar.

Essas fases de expansão do samba no mercado cultural, portanto, coincidem com uma aproximação maior das elites com o mundo do samba. Foi assim na década de 30, quando as classes médias passam a consumir o samba “dos morros” pelo rádio e pelo disco e impulsionam a explosão da popularidade das escolas de samba no carnaval. Foi assim na década de 60, quando o estreitamento do espaço cultural pela repressão e vigilância política impele a juventude da Zona Sul para as casas de samba e terreiros de escola no centro da cidade e nos subúrbios. Está sendo assim na explosão das rodas de samba pelas adjacências da Lapa carioca, pelo grande afluxo de público a casas “temáticas” voltadas para o samba na cidade de São Paulo, pelo enorme aceitação de Zeca Pagodinho até mesmo nas classes altas etc.

Mas, como dito acima, o “sucesso” nunca garantiu ao samba o reconhecimento efetivo e perene que ele merece enquanto expressão maior da especificidade musical brasileira. Ou seja, a expansão do consumo dos produtos musicais ligados ao universo do samba, por si só, nada garante relativamente ao histórico descaso e à marginalização marcadamente ideológica relativa ao gênero - comumente associado às classes baixas e à cultura negra (pejorativamente), quando não à malandragem e à marginalidade -, se não refletir uma efetiva formação de platéias aptas a compreender essa forma da arte musical popular do povo brasileiro como expressão maior de toda uma cultura, que traduz formas específicas de sociabilidade, comportamento, ética, visão de mundo etc.

Como sempre lembra mestre Nei Lopes, o samba é um saber iniciático, no que espelha inequivocamente, aliás, a matriz cultural africana. Não se compreendem seus significados, suas regras e sobretudo seus mistérios, se não se progride na experienciação paulatina desta ampla gama de sutilezas que permeia as relações, os rituais, os ambientes em geral desse universo.

Portanto, para que o samba possa aumentar o número de seus adeptos cativos, insusceptíveis aos ventos efêmeros dos modismos, é preciso que se ofereça a este publico que se aproxima do “produto final” do mundo do samba a procura de mero entretenimento condições para que ele compreenda os diversos outros elementos a envolver esta expressão cultural tão singular.

Talvez seja difícil precisar, no âmbito estreito da discussão que aqui colocamos, quais especificamente sejam estas condições, mesmo porque abrangem sutilezas cujo entendimento também pressuporia um grau de iniciação. Mas é possível identificar com maior facilidade, por exemplo, onde comparativamente estas condições estão mais presentes. Com efeito, nas rodas de samba que em São Paulo formaram-se em torno dos movimentos de valorização do samba tradicional, marcados duplamente pelo culto fiel às tradições e à memória do samba, por um lado, e pela valorização de novos compositores, por outro, observa-se a formação de verdadeiras comunidades, marcadas por laços de identidades sociais e geográficas, sim, mas sobretudo de devoção ao nosso ritmo maior.

Some-se a isso o espírito que tem norteado novas (e outras já não tão novas) iniciativas no circuito do samba paulistano e observaremos um cenário mais promissor, segundo a óptica que aqui buscamos adotar, do que no carioca, o que pode constituir curiosa inversão de uma tendência histórica. Ao circular por um circuito que ainda atrai, relativa ou absolutamente, um público maior do que em São Paulo, não tenho sentido predominar na mesma proporção as condições para formação de platéias que atravessem as meras tendências de momento. É sabido que as umbilicais ligações histórico-geográficas da cidade com o universo do samba, a identificação do ritmo como expressão natural e privilegiada do modo carioca de ser, o contato permanente com as tradições representadas pelos baluartes dessa cultura específica etc. facilita enormemente as coisas. Mas é essa mesma naturalidade que pode, paradoxalmente, vir a tornar mais difícil a percepção a que me refiro, isto é, da ausência de condições para um envolvimento mais substancioso e, por conseqüência, mais perene com o gênero.

Como se trata de uma percepção subjetiva difícil de justificar precisamente, só o tempo a confirmará ou desmentirá. Alertando, estou tão somente buscando cumprir mais fielmente meu papel de elo transmissor da tradição que recebi dos antigos e pretendo legar aos que vierem depois. Compreender-me-ão os iniciados.

segunda-feira, 15 de março de 2004

Aznar dele

Fernando Szegeri


O povo espanhol deu nas urnas a resposta que estava nas vontades de todo o mundo. O adesismo focinhante do fâmulo José María Aznar à paranóia mercenário-beligerante estadunidense mereceu a vergasta que todos os democratas gostaríamos de empunhar e que agora parte ao encalço da dupla B&B.

Ainda que fosse remotamente possível abstrair o horror insano do 11 de março, não creio que o resultado seria outro. A tragédia selou fatidicamente o desfecho da disputa, não só pelo repúdio ao terrorismo em todas as suas formas - incluído o apoiado pelo gabinete do PP espanhol no Iraque - mas sobretudo pela grotesca tentativa do governo de a todo custo responsabilizar o ETA pelo ataque em Madri, contrariamente às mais gritantes evidências. A mais básica delas parece que passou despercebida da maioria das análises (confirmando uma tese conhecida de Sherlock Holmes): qual interesse teria a organização basca de promover um atentado dessas proporções e não assumir (ou negar) a autoria? O significado político das ações do ETA reside unicamente na demonstração do que será capaz em caso de não atendimento às suas reivindicações. Um ataque anônimo absolutamente não faz parte do menu de atrocidades habitualmente oferecido pelos extremistas euscaros.

A insistente e inconsistente responsabilização do ETA pelo governo espanhol, assim, representou uma ignóbil tentativa de expiação de culpas, como se o premiê pudesse, com mais uma mentira, aliviar o peso que certamente lhe estará atormentando o sono bem mais do que a própria derrota. Não importa que vis motivações (econômicas ou políticas) tenham-no impelido ao seu lamentável apoio à recente invasão estadunidense ao Iraque. A incerteza sobre o nexo de causalidade entre seu ato e a absurda ceifa de tantas vidas humanas é certamente uma carga muito além do que qualquer espírito humano possa suportar. Mas o eleitorado espanhol não se deixou comover pela indigência humana do rastejante Aznar e aplicou, implacável e exemplarmente, a palmatória da democracia.

Aos grupos fundamentalistas partidários do terror interessa incorporar-se a dúvida aos efeitos das suas monstruosidades. Interessa-lhes que pese no espírito das vítimas a incerteza sobre motivações e autorias, para que se tema a todo instante, para que o pânico e a insegurança dominem os espíritos. Ninguém sabe quem será a próxima vítima, nem o local do próximo ataque, porque não se vê e não se conhece o inimigo, nem as suas reais motivações. Paira sempre a advertência diáfana aos que se contrapuserem às causas que elegem. Então, nas mentes tão dilaceradas quanto os corpos, viverá eternamente o terror.

Ao deixarmos nossos espíritos dominarem-se e acabrunharem-se pelo medo, porém, estaremos dando aos bárbaros a coroa de louros desta prova macabra. Não se pode deixar ofuscar a luz que brilha em cada um de nós, expressão ao mesmo tempo singular e universal do mais incrível fenômeno do Universo, sob qualquer ponto de vista que se encare: a Humanidade, esse impressionante coletivo que produziu todo um mundo de conhecimento, sabedoria e beleza, a despeito do mal que nos habita intrínseca e dialeticamente.

Irmãos espanhóis, europeus, iraquianos, afegãos, cubanos, africanos, estadunidenses e de todo o mundo, com o coração esmagado pela dor, pelo medo e pela dúvida, meu samba é a única coisa que eu posso vos dar:



Não tenha medo, amigo

Martinho da Vila


Não tenha medo, amigo
Não tenha medo
É, como falou o poetinha Vinicius,
"São demais os perigos dessa vida"
Mas o sangue borbulha nas veias
E eu tenho que andar na rua
Gosto de enfrentar o mundo cara-a-cara
Olhar as pessoas no olho
Tenho que estar nos botequins, nas favelas
Nos palcos, nas platéias
Nos campos, nas cidades, nos sertões
Aqui e acolá, como gente
Pés no chão, no meio do povo
Cautelosamente sem cautela
Receosamente sem receio
Distraidamente distraído
Mas sem medo

Não tenha medo, meu amigo, não tenha medo
Porque o medo é o seu maior inimigo
Admiro medrosos sem medo
Detesto valentes
De heróis desconfio
Do mundo eu não tenho medo
Mas viver a vida é um desafio
Não tenha medo
Não tenha medo, amigo

É, amigo
A vida é um segmento de reta sinuoso
Um vai-e-vem
Todo mundo tem que ser viandante
Pois "barco parado não faz frete"
- Tá lá nos caminhões
"Fé em Deus e pé na tábua"
Seguindo o destino
Moldando o destino, transando com ele
Sem medo do que você tem e do que você pode ter
Do que você é e do que você será
Vá em frente amigo
Amando a mulher amada
Dando amor a muitas mulheres
Caminhando em busca do infinito
Sem mitos, sem metas
Sem medo

Não tenha medo
Porque o medo é o seu maior inimigo
Não tenha medo de ficar doente
De ser impotente
Ou de levar um chifre
Confie no amor da amante
E na honestidade da mulher de casa
Não é mais tempo do duelo nobre
Ou de lavar a honra com florete ou sabre
Não tenha medo do clamor divino
E nem do capeta e seu inferno em brasa

quarta-feira, 10 de março de 2004

Olhares amazônicos

O título deste blogue, "Só dói quando eu Rio", pretende ser uma homenagem a dois grandes ídolos meus na música, Moacyr Luz e Aldir Blanc, e à própria canção, uma obra-prima. Mas mais do que isso, exprime essa trajetória da minha vida de descobridor do jeito brasileiro de ser, tão serpenteada por rios, do "de Janeiro" até os amazônicos, caudalosos. Estes encarnam um aprendizado para mim fundamental no desvelamento de um olhar tão singular sobre a brasilidade e sobre a humanidade: o olhar amazônico.

Faço essa introdução para assinalar que, após uma fase mais detidamente carioca, outros rios presentes na minha vida irão transbordar por aqui, na expressão feliz de meu irmão Eduardo. Inclusive com textos de outros autores sobre rios (as contribuições serão muitíssimo bem vindas), retomando uma série que eu comecei alhures e não levei a diante.

Começo por assinalar a matéria publicada em "O Globo" deste sábado, sobre o escritor Daniel Munduruku. A segunda parte termina com uma frase que exprime muito do jeito índio de ver o mundo, e que me inspirou a transcrever o belo poema do bardo roraimense Eliakin Rufino, lindamente musicado pelo talentosíssimo cantador amazônico Nilson Chaves:


O Sonho do Xamã

(Eliakin Rufino e Nilson Chaves)

Um xamã yanomami sonhou
que a fumaça da civilização
abriria um buraco no céu
e o céu cairia no chão

O xamã resolveu avisar
o que o sonho queria dizer
mas ninguém parou pra escutar
pouca gente tentou entender...

Muito tempo depois deste sonho
a ciência pode então descobrir
que o buraco na camada de ozônio
é por onde o céu pode cair...

O meu sonho é que nada aconteça
que a vida não tenha final
que o xamã não desapareça
que o sonho não seja real

segunda-feira, 8 de março de 2004

Dia da Mulher

Bom, como não podia passar em branco, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, publico aqui carta a mim endereçada por meu irmão de fé, Julio Vellozo, doutor máximo na matéria, aliás:


"São Paulo, 08 de março de 2004


Fernandão,

Estava na minha mesa, lendo alguns jornais, naquela honestidade que me é característica, quando deparei-me com duas notícias. Uma boa e uma má.

A má:

A contagem de espermatozóides está diminuindo cada vez mais. Ou seja, os doutores cientistas, essas pessoas de bem que ficam estudando as formas de livrar-nos de todo o mal, descobriram o que já nos era óbvio: a macheza vive um processo contínuo e firme de decadência. A figura clássica do homem está com os dias contados. Seu lugar vai sendo assumido por uma figura intermediária, resultado da inevitável vitória final do feminino sobre o masculino. O macho, seguindo a escalada implacável da evolução, vai deixar de ter papel no processo de reprodução. Esse negócio vai durar alguns anos, talvez séculos, mas palpito que vamos pro vinagre antes da arara azul e do mico-leão dourado.

Mas tem também a notícia boa:

Eles descobriram também que nos espermatozóides que vão nos sobrando, os famosos xizinhos, são em número muito maior do que os famigerados ypsilonizinhos. O que quer dizer que, lançamos à luta, cada vez que possuímos uma dama, um número cada vez maior de potenciais mulheres. Nós dois, que fizemos nossas partes colocando duas belas mulheres no mundo, seremos correspondidos por nossos companheiros de batalha.
Que beleza! Futuro radiante dos povos será com mais mulheres e menos homens. Uma humanidade mais generosa, mais inteligente, mais sensível - em suma mais feminina.

Ou seja meu velho, do macaco pra cá melhoramos bastante. Daqui pra frente melhoraremos mais. E nós, homens à antiga, do tipo que ainda manda flores, devemos aceitar tranqüilos a nossa derrota final. As mulheres venceram, apesar de ainda não terem levado ( vide toda a exploração a que são submetidas). Venceram e convenceram.
Eu de minha parte, e tenho certeza que você da sua, continuarei da minha trincheira, antagonizando com as mulheres, mas só pra na contradição ser superado.
Mas confesso que, apesar de entender tudo isso como a vitória do feminino sobre masculino, me reservarei o direito de continuar achando algumas coisas bem esquisistas. Como o velho Gonzagão:

"Cabra do cabelo grande
Cinturinha de pilão
Calça justa bem cintada
Custeleta bem fechada
Salto alto, fivelão
Cabra que usa pulseira
No pescoço medalhão
Cabra com esse jeitinho
No sertão de meu padrinho
Cabra assim não tem vez não."
No sertão de cabra macho
quem brigou com Lampião
brigou contra Silvino
quem enfrenta batalhão
amansa burro bravo
pega cobra com a mão
trabalha sol a sol
de noite vai pro sermão
rezar pra Padre Ciço
falar com Frei Damião
No sertão de gente assim
No sertão de gente assim
Cabeludo tem vez não"

Abraço,

Julio

Refúgio


O Grande Espírito das matas encerrará meu ser quieto

E o seio da Hiléia guardar-me-á do pavor

da mediocridade e da covardia

Quero me esconder nas profundas escurezas e como boto

emergir troçante de visagens sem destino

de viagens em desatino


Entre purus e roixinóis

Ficará minha música total... Silenciosa.

Minhas lágrimas inundarão Alenquer e

pelo Surubiú descerão ao Rio-Mar


Na imensidão dos verdes e ventos

toda a vaidade sucumbe

Quero perder-me nos caminhos de Ossain

E deixar-me aos apelos da Iara

Quando a viração eriçar-me a barba descomposta


E o Espírito do Homem há de pairar novamente sobre as águas


(Fernando Szegeri, setembro/2003)

quinta-feira, 4 de março de 2004

Ambev + Interbrew

Noticiários de hoje estampam a fusão entre esse monstrengo tão nacional chamado American Beverage (AmBev) e a cervejaria belga (!) Interbrew. Minha primeira reação foi entre a revolta e a desolação: depois de termos perdido a soberania sobre as telecomunicações, a energia elétrica, a malha ferroviária etc. etc., só nos faltava mesmo é deixar que uns gringos de cintura dura decidam sobre qual cerveja devemos tomar. Porque a despeito das reiteradas negativas, a “Folha de S. Paulo” garante taxativamente que 52% do capital votante (i.e., com poder decisório) da AmBev foi vendido aos europeus.

A própria fusão entre as duas maiores cervejarias brasileiras que criou esse Frankenstein etílico-industrial foi um golpe de morte em um dos pilares da cultura brasileira de butiquim. Há tempos, o butequeiro bebedor de cerveja que não se declarasse “Brahma” ou “Antárctica” seria um ser excluído do mundo, assim como os são-paulinos, botafoguenses, americanos (de Minas) ou tunantes (torcedores da Tuna Luso, pra quem não tem o pezinho no Pará). Sim, porque a dualidade essencial que permeia nossa existência exige que nos posicionemos sobre as realidades fundamentais: ou você é palmeirense, ou corinhthiano; Vasco ou Flamengo; Cruzeiro ou Atlético; Remo ou Paysandu. O resto são seres que gravitam em uma dimensão paralela do universo sem jamais poderem experimentar uma nesgazinha de realidade. Pois o que não se nega não é real (será que Hegel tomava cerveja? Alemão...).

A rivalidade Brahma x Antárctica alimentou, durante anos, infindáveis horas de salutares embates butequísticos sobre as qualidades das louras que dividiram realmente a preferência nacional, no tempo em que violão não era ligado na tomada e fábrica de pandeiro dava lucro, como dizia o saudoso Moraes Sarmento. Quanta sardinha não se fritou, quanto casamento não acabou, quantos fígados e colesteróis não foram pra estratosfera em nome de tema tão fundamental para a identidade nacional. Um belo dia, acordamos e... lept! Tudo estava consumado. Reputações arruinadas, mundos desabados por um mero acordo operacional (pras negas deles...).

A cerveja brasileira é ímpar no mundo, sabidamente. Desde a apresentação em garrafas de 600 ml - as lindamente conhecidas “ampolas” – que só no Brasil tornam o ato de beber cerveja um acontecimento intrinsecamente social (porque tomar uma lata é quase igual punheta: não é que seja ruim, mas é outro barato), até a preferência quase absoluta pelas chamadas “pilsen”, cervejas de baixa fermentação e baixo teor que alguém um dia ganhou dinheiro pra sacar que “descem redondas”. Agora, se um belo dia meia dúzia de altos executivos belgas (meu Deus, eu não me conformo...) acordarem e acharem que nossa Brahma é fraca demais, tudo estará acabado? E se por uma conveniência belga insondável qualquer resolverem tirar do mercado a “Faixa Azul”, meu compadre Moacyr Luz vai beber o quê na vida? As perspectivas são apavorantes!

Mas como a diferença do otimista para o pessimista é mesmo ver o copo meio-cheio ou meio-vazio, um anônimo já soltou hoje, logo cedo, a pérola no butiquim do Severo: “pelo menos agora vai ter Brahma no mundo inteiro; já dá pra gente fazer um pagode nas Oropa”.

quarta-feira, 3 de março de 2004

Viva a Vila


À minha direita raia um sol vermelho-e-branco
À minha esquerda o verde-e-rosa vem dormir
À minha frente ecoa um grito de gol
Atrás de mim dorme a Floresta do Andaraí


(Rui Quaresma e Nei Lopes)



Sei que vocês não querem saber das minhas venturas e desventuras carnavalescas – sobretudo os que ficaram em São Paulo tomando chuva (não deu pra segurar...) – mas há que se prolongar o gozo o quanto se possa. E Vila Isabel, a minha Vila querida, foi palco de dois momentos de maior emoção.

O primeiro seria barbada, depois da bola que cantei aqui: processado o inventário da infância de Aldir Blanc pelas ruas do bairro mais querido do Brasil, na partilha coube-me entregar a placa ao meu ídolo, redundando na maior contra-homenagem que eu mesmo já recebi. Coisas possíveis a partir do universo absurdo – por isso mesmo crível - de um maluco querido, que entre agravos retidos e recursos adesivos, ocupa seu tempo enchendo os amigos de presentes tão preciosos como imateriais: Edu Goldenberg, meu mano, mais do que nunca, obrigado.

Não bastasse, o legado ainda compôs-se de uma bebedeira homérica e uma camisa de Vila Isabel tirada do corpo por uma criatura que é só samba, fibra e doçura, sorriso e coração de não caber no metro e setenta franzinos, depois de meia dúzia de sambas-enredo puxados. O homem que, nascida sua quarta filha em plena Terça-feira Gorda, saiu com a roupa do centro cirúrgico pra desfilar com sua Vila querida, ainda se livrando das marcas da tinta com que pintara o quarto da pequena, em duas madrugadas insones de carnaval. Buba da Vila, vinho das melhores pipas, laços difíceis de se descoser...

O segundo momento, revivendo meus melhores carnavais, a G.R.E.S. Unidos de Vila Isabel lançou-se ao Boulevard 28 de Setembro, com baianas, bateria, Velha Guarda, mestre-sala e porta-bandeira, tudo a que tínhamos direito os que sofremos por estes anos de exílio imerecido no grupo de acesso. O pressentimento da vitória-retorno fez o presente da escola para a sua comunidade – sim, na Vila ainda há dessas coisas... – ser ainda mais especial. Os moradores do bairro de Noel responderam à altura, com bandeirinhas tremulando nas janelas e o povo na rua cantando com sua branco-e-azul.

Há dez anos, eu achava o programa mais gostoso do carnaval o ensaio-geral da Vila na quarta-feira anterior ao desfile. Até hoje me arrepio ao lembrar de Martinho subindo no carro de som e puxando o esquenta: "Sambar na avenida de azul e branco é o nosso papel...". E sempre atribuí essa energia à grande mistura de classes, raças e tribos que criam as condições propícias nesse balão de ensaio da plena integração carnavalesca. Porque carnaval é mistura, é subversão das regras, hierarquias e separações. Tomara que um dia o percebam os boitatás da vida.

Parabéns, Vila! Quero vê-la linda, quero vê-la ainda muito mais feliz. O grupo especial terá de aturar novamente senhoras do Boulevard, garotos da Maxwell e a rapaziada do Macaco desfilando sob as luzes-lentes internacionais.

Soneto para Paula

Em três de março de setenta e cinco
A minha expectativa e de Cristina
Era só saber: menino ou menina?
Pra logo meter a chuteira ou o brinco

No ninho de dois, mais um mafagafo
Vinha pra gente descer o sarrafo
Irmãzinha caçula de uma figa
Saco de pancada brincando ou em briga

Originados da mesma semente
- caminhos separados pela vida –
Nenhum de nós pode, por mais que tente

Separar do arquipélago cada ilha
Negar a rede de tramas cosida
No ventre e no coração de Cecília

segunda-feira, 1 de março de 2004

Feliz ano (de) novo


Hoje começa o ano. Navegante de rio, apavora-me o mar aberto, total. Nenhuma margem, nenhuma praia. Só o mar pela frente, a completa indiferenciação.

Nada mais se pode adiar. Tomaram-nos o grande curinga, a panacéia para todas as coisas que não se queria ou podia encarar: “depois do carnaval a gente vê”, “depois do carnaval a gente senta”... De repente, não mais que de repente (embora a gente já soubesse...), sobra-nos na mão esse infalível mico-preto do dia-a-dia. Todo o turbilhão de aborrecimentos, sobretudo os mais banais – esses insuperáveis - , parece precipitar-se sem licença, como se até agora só estivessem pacientemente esperando o seu fatal anti-jubileu: todo o perdão desaparece, toda condenação é inapelável, todas as dívidas são exigíveis.

Hoje acordei na hora, o despertador nem chegou a tocar. Sem perceber, eis-me de sapato, pasta e blusão (nem estava frio) olhando no espelho pateticamente, como a tentar saber afinal o que aconteceu. Onde foi parar meu vestido de chita? Mas se há alguns instantes Ela me puxava pela mão no meio do largo... Cadê a baiana que agora mesmo ajudei a vestir? Vejo que sumiu de vez a tinta preta atrás das orelhas... A bandeirinha da Vila ainda tremula naquela janela e eu cheguei adiantado quinze minutos no serviço.

O Carnaval na sua euforia esfuziante carrega uma inegável dimensão de morte, de imolação, atualizada nos rituais de libação. O delírio do folião encerra um abandono, uma entrega da própria vida à sua causa-crença. A sofreguidão dessa vivência é a negação de nossa não-vida de filas, reuniões, contas para pagar, telefonemas a dar, imêious a responder.

Vamos, pois, adiante, singrando marços e abris, oh Braga, nessa inescapável certeza do que não somos, rumo a uma visãozinha de margem que não negará a trajetória. Não sou eu quem me navega, quem me navega é o bar. Que nos valha o Senhor dos Navegantes até qualquer praia possível.