quarta-feira, 31 de maio de 2006




Como não tenho palavras para exprimir à altura a grandeza e a importância do inigualável gênio, peço licença ao meu amigo Luís Filipe de Lima, de cuja autoridade indiscutível me socorro, para reproduzir abaixo texto de sua autoria em homenagem a essa incomparável figura da música brasileira. Tristíssimamente, ao ler troquem "hoje é aniversário" por "hoje não está mais entre nós". Mas o "VIVA DINO!" ressoará para sempre.







Pai de todos

Luís Filipe de Lima


Hoje é aniversário do grande mestre do violão de sete cordas: Horondino José da Silva, o Dino. Ele completa 87 anos bem vividos e, de quebra, 70 anos de carreira. Foi o homem que mais desenvolveu e divulgou a arte do sete cordas brasileiro, surgido no início do século passado. Dino, que começou a tocar violão profissionalmente em 1935, passou para o sete cordas bons anos depois, em 1953, e desde então garantiu ao instrumento, antes cultivado por poucos músicos e quase limitado à condição de curiosidade, lugar definitivo na história da música brasileira. Graças a ele, o violão de sete - e não o violão de seis, o contrabaixo, o trombone ou outro instrumento qualquer - é hoje o baixo cantante por excelência das formações instrumentais associadas ao samba e ao choro.

Na esteira de seu talento vieram gerações de discípulos informais, entre os quais é possível lembrar de Raphael Rabello, Luiz Otávio Braga, os irmãos Valdir e Valter Silva, Darly Louzada, Chia, Cloves, Pedrinho Bastos, Rubens, Paulão Sete Cordas, Jorge Simas, Carlinhos Sete Cordas, Sombrinha, Maurício Carrilho, Josimar Carneiro, André Bellieny, Wander Fontana, Marcello Gonçalves, Lucas Porto, Nando Duarte e Tiago Prata, para ficarmos só no Rio de Janeiro. E Rogerinho Caetano, claro, goiano criado em Brasília que se mudou ano passado para cá e que, com pouco mais de vinte anos, é uma das grandes revelações do instrumento. Pois não há sete-cordas que não tenha se emocionado ao escutar Dino, que não tenha ouvido algumas de suas centenas e centenas de gravações para ficar "tirando os baixos", imitando suas inflexões, sua pegada, seu vocabulário de frases. Que sete-cordas não terá ouvido, de cabo a rabo, os indispensáveis "Vibrações" (RCA-Camden, 1969), com Jacob do Bandolim e o Época de Ouro, e "Cartola" (Marcus Pereira, 1974)?

Muitos tiveram aulas com Dino durante os mais de trinta anos em que lecionou na Casa Oliveira, na rua da Carioca, e no Bandolim de Ouro, na Marechal Floriano. Curiosamente, ele preferia ensinar a iniciantes e quase não dava aula de violão de sete, só de seis. Cheguei a estudar violão de seis com Dino, durante poucos meses, quando já era profissional do sete. Guardo desse tempo as melhores lembranças e histórias que merecem uma penca de posts por aqui. Uma vez eu disse a ele que, se o Brasil fosse sério, criava-se uma lei obrigando todo sete-cordas a depositar 10% de seus cachês na conta do mestre, a título de royalties. Não seria exagero. Dino sobrevive hoje com uma minguadíssima pensão e com a ajuda do filho único Dininho, também músico, grande figura, há anos baixista de Paulinho da Viola. Já aposentado por falta de condições de saúde (não faz mais shows, não grava, não dá mais aulas), o mestre leva uma vida digna em seu apartamento de Vila Isabel, porém igual à da grande multidão de idosos de classe média que precisam se privar de muita coisa para conseguir pagar plano de saúde e remédios. Se não fosse o amparo da família, sua situação seria certamente crítica. Mais uma injustiça contra mais um grande brasileiro.

Mas deixemos as inconformidades de lado, pelo menos por hoje. É dia de dar um abraço no velho. É dia de festejar seus oitenta e sete anos de vida e setenta de música – e que música! É dia de espalhar por aí que Dino 7 Cordas não é um qualquer, que Dino é gênio da raça, é craque da pelota, é o músico acompanhador que mais teve destaque como solista em toda a história da música brasileira, que Dino é assassino profissional, atirador de elite, equilíbrio supremo entre virtuosismo e concisão, pressão e suingue, inventividade e rigor, Dino é umbandista, sim senhor, e se fosse do candomblé bem podia ser devoto de Orumilá, divindade iorubá que é a dona da sabedoria, da adivinhação e das respostas (não é a resposta matéria-prima do sete cordas?), Dino é nossa memória, testemunha dos melhores e piores tempos que os profissionais da música já viveram no Brasil da indústria cultural, Dino é totem e fundador de uma nobilíssima estirpe, Dino é pai de todos os corações que vibram junto com a sétima corda.

Viva Horondino José da Silva! Viva Dino 7 Cordas!


Luís Filipe de Lima, é um dos melhores setecordistas do país, compositor e arranjador competentíssimo; produtor sensível, ousado e incansável; intelectual reflexivo e pesquisador seríssimo das coisas da cultura popular brasileira


sexta-feira, 26 de maio de 2006

Paranatinga

Paulo André e Ruy Barata


Antes que matem os rios
e as matas por onde andei
antes que cubram de lixo
o lixo da nossa lei
Deixa que cante contigo
debruçado em peito amigo
as coisas que tanto amei...
As coisas que tanto amei!

Antes que matem a lembrança
dos muitos chãos que pisei
antes que o fogo devore
o meu cajado de rei
deixa que eu cante afinal
na minha língua gera
as coisas que tanto amei...
As coisas que tanto amei!

Araguary, Anapu, Anauerá
Canaticu, Maruim, Bararoá
Tajupará, Tauari, Tupinambá
Surubiu, Surubim, Surucuá
Jambuaçu, Jacamim, Jacarandá
Marimari, Maicuru, Marariá
Xarapucu, Caeté, Curimatá
Anajibu, Cunhantã, Pracajurá...

As coisas que tanto amei!
As coisas que tanto amei!

quarta-feira, 24 de maio de 2006

Bolinho de feijão

Paulo Mendes Campos


Uma vez, ao sair de um labirinto burocrático, psiquicamente entorpecido, reparei que eram onze horas de manhã limpa e amena. Suspirei para a mulher que estava ao meu lado: Que pena!

Que pena, sim, pois é bem ridículo renascer às onze horas de manhã limpa e amena, e não existir um só antro na cidade, no qual uma alma leve possa comer um bolinho de feijão! É uma das contradições da civilização! Intolerável que uma cidade devore oceanos de peixes, rebanhos de bifes, enxurradas de cereais e hortaliças, sem poder ofertar ao consumidor um pratinho de bolinhos de feijão. Fazenda minhas as palavras sombrias de um russo, no banho de luz da Praça Marechal Âncora, ameacei a humanidade: Mundo louco, feliz em tua loucura, o teu despertar será terrível!


Mas a mulher que andava ao meu lado era gringa, e perguntou-me: What is a bolinho de feijão?

Well... um bolinho de feijão! Um bolinho de feijão é feito de feijão-fradinho. Parece com acarajé, mas não é bem acarajé. Um bolinho de feijão é uma coisa que você come muito na infância, e mais ainda na adolescência, quando descobre a cerveja, e depois fica a procurar, em vão, por todos os cantos do mundo. Um bolinho de feijão, às vezes é a joie de vivre, para mim ele é le temp retrouvé, e era o que a Gioconda queria quando sorriu. Um bolinho de feijão é quase o que os germanos chamam de Gesamtkunstwerk, uma perfeita e orgânica obra de arte. Um bolinho de feijão é o maná (o quente) que este céu agora nos promete, mas não encontraremos jamais.

Mudando de rota (em Leblonema não há bolinho de feijão), cruzamos a praça, caímos à esquerda em General Justo, e comprei duas passagens no Aeroporto Santos Dummont.

Em Belo Horizonte – expliquei em voz baixa para a minha alienada – ainda há bolinhos de feijão. Não tanto quanto no meu tempo, é claro, pois a era dos enlatados corrompeu as paciências culinárias. Mas há! Sei de um bar n Rua da Bahia – o Ignacio’s - que, neste mesmo instante, está a frigir bolinhos de feijão da melhor qualidade. Daqui a uma hora e de vôo e vinte e cinco minutos de táxi, eu te apresentarei, mulher, ao bolinho de feijão.

Dei bom-dia ao bom proprietário e escolhi o melhor lugar. Expliquei a boa técnica para a companheira: a gente não deve ir chegando e pedindo logo um prato de bolinhos de feijão. Não. Deve tomar um ar de quem não quer nada, mas de quem pode subitamente ter uma idéia fabulosa. Como se os bolinhos nem existissem, pedir o melhor uísque escocês, para apanhar a boa boca. Ir bebendo com tranqüilidade, falando de coisas sem importância, para distrair a idéia. Depois, no momento de pedir o segundo uísque...

Foi o que fizemos. Falamos sobre as guerras da Ásia e outras trivialidades, bebericando devagar, com aquele gosto das esperanças certas. Acendi um cigarrinho e chamei o garçom:

- O senhor agora, por favor, vai trazer mais dois uísques e um pratinho com aqueles bolinhos de feijão

- O doutor vai desculpar, mas o bolinho de feijão está em falta.

Como Franz Kafka, não entendi mais nada. Passar duas horas numa repartição pública, descobrir de repente na luz da manhã que Deus existe, o avião existe, o bolinho de feijão existe... E o bolinho de feijão estava em falta! Meu primeiro ódio foi lingüístico, contra aquela expressão idiota: nada do que a gente quer devia estar em falta. Em seguida, com a fleuma dos arruinados, perguntei ao rapaz:

- Por que que o bolinho de feijão está em falta?

- Porque a cozinheira, que sabia fazer bolinho de feijão, partiu de faca na mão pra cima dum garçom, de faca na mão; o patrão mandou ela embora.

- Mas, meu amigo, não faz sentido: se a cozinheira, que sabe fazer bolinho de feijão, partiu de faca na mão pra cima do garçom, que não sabe fazer bolinho de feijão, quem devia ir embora é o garçom.

- Mas acontece, doutor, que a cozinheira não tinha razão.

- Meu caro, o bolinho de feijão tem razões que a própria razão desconhece... A prova disso é esta: acabamos de chegar do Rio de Janeiro para comer bolinho de feijão. Não é só isso: esta senhora nasceu na Europa para conhecer um dia o bolinho de feijão de Minas Gerais... Vê se quebra o galho, meu chapa.


O Inácio veio falar comigo e repeti para ele minha estupefação, no caso da cozinheira, e minha indeclinável urgência em comer alguns bolinhos de feijão. O homem comoveu-se, mandou um menino percorrer os botequins da capital. Aguardamos em silêncio.

Meia hora depois, três bolinhos de feijão, murchos e frios como as graças fanadas na véspera, eram colocados na mesa. Ela comeu um; eu comi outro; dividimos o último irmãmente. E voltamos para o Leblon.

(in Os bares morrem numa quarta-feira, São Paulo: Ática, 1980, pp. 118-120)

sexta-feira, 19 de maio de 2006

Chuva

Edson Coelho de Oliveira


Diz-se que as coisas - sem consciência - só existem em nós, que lhes atribuímos existências e metáforas; não assim com a chuva, nossa mãe.

Quando quero amar Belém, digo chuva, e a cidade me reconhece de longe, e amo Belém nas ruas, sob as mangueiras cacheadas, amo Belém na Cidade Velha, onde o Tempo mora em casarões, amo Belém nas ruas do Reduto e do Telégrafo, onde o cinza dos crepúsculos polvilha nossa alma e gera uma melancolia alegre, amo Belém na Pedreira e na Matinha, onde as meninas desfilam na volta da academia e, à noite, os adolescentes se reúnem, aos montes, encostados nos canais - essa Belém que só encontro quando chove, e o asfalto reflete não a luz, mas a luminosidade, como se o Sol não se importasse com tanto brilho, ou a Lua se dissolvera numa tela delicadíssima que nos envolve secretamente, tal um jardim sem cigarras.

Em quase todo o mundo, a relação dos povos com a chuva é escassa, como se ela nem existisse ou pudesse e mesmo devesse ser evitada; na Amazônia, a chuva é cotidiana, íntima, inevitável, 'de casa'. Por isso, quando quero amar Belém, digo chuva, e na Feira da 25 a tapioquinha recende como se o cheiro viesse do chão, e no Ver-o-Peso os barcos antigos parecem pintados diretamente na paisagem, e sob a chuva a Praça da República é a mais extensa tela da cidade, e em algumas ruas de Batista Campos faz sempre sol mesmo sob um aguaceiro, e no Entroncamento Niemeyer mora numa nuvem e há dois anos não sai de casa, e na Cidade Nova todas as pessoas parecem combinar para sair ao mesmo tempo, tão logo passe a chuva do início da noite, e no Guajará o asfalto estranha a ausência de prédios, e no Curuçambá as estradas sinuosas dão à cidade um colar de árvores, e no Benguí piscinas de água natural recebem ameixas e meninos.

É também certo que, quando quero amar a chuva, digo Belém, e se for em São Paulo a garoa torna-se cálida, e se for no Rio, o mar entranha-se pelas paredes das ruas e odora no chope, se for em Ouro Preto, dezenas de poetas se reúnem em silêncio nas ladeiras de pedra com telhado, se for em Brasília, o tráfego flui como o rio de aço de Drummond, se for na Chapada dos Guimarães, as rochas jorram águas límpidas sobre plantas e cristais, se for em Marituba, três ruas pedirão para morar noutro lugar, se for em Benfica, os sítios tomarão um banho de mil anos, se for em Mosqueiro, a água trocará duas palavras com a água e eu amanhecerei no Ariramba ou no Marahu.

Sim, quando quero amar a chuva, digo Belém, nem que fique preso sob uma marquise, nem que o trânsito me retenha, nem que o meu amor espere ao celular, nem que eu chegue atrasado ao Mangueirão, nem que os bares já tenham fechado (à meia-noite), nem que os amigos liguem de madrugada para gozar a extinção do meu time, nem que a Perebebuí esteja só buraco, e ali perto o Bosque é lindo como um grande pedaço da minha infância que não envelhece, e na Primeiro de Dezembro (não a João Paulo II, recente-renomeada) amanheci tantas vezes que conheci duas estrelas de seu céu: pois nem agora que a Primeiro de Dezembro foi proibida de ver a madrugada desisto de dizer Belém, digo Belém e amo essa chuva de todas as horas, de todas as ruas, com suas imagens clássicas, suas calçadas tomadas, a curva parabólica que os carros fazem em frente ao São José Liberto (ex-presídio), estas sensações de Belém tão à flor do corpo que ando, de um jeito ou de outro, feliz da vida com tanto temporal bendito temporal sobre nossas cabeças.

Porque Belém e a chuva, a chuva e Belém, são a mesma coisa.


Edson Coelho de Oliveira é jornalista, poeta e escritor paraense, necessariamente em todas as ordens.

Fonte: O Liberal, 07/05/2006

quarta-feira, 17 de maio de 2006

Só diálogo pode superar onda de violência

Alvino Augusto de Sá


A sociedade acordou nesse último sábado assustada com notícias de uma onda de violência: rebeliões em presídios, com reféns, mortes de agentes penitenciários e de policiais etc.Esses conflitos não são pontuais, mas têm uma longa história, que corresponde à própria história do cárcere. O cárcere segrega, despersonaliza e estigmatiza o preso. Na longa história de nosso sistema penal interesseiramente seletivo, da pena privativa de liberdade profundamente humilhante e destrutiva, das prisões horrivelmente degradantes, o ódio vem se acumulando, a capacidade crítica (por parte de alguns dos degradados) vem se afinando, a violência explícita (por parte da massa liderada) vem se aflorando, par a par com o crescimento da corrupção política impune.

E tudo isso não passa desapercebido da crítica paulatinamente mais afinada daqueles que, embora degradados, conseguem manter-se vigilantes a toda a irracionalidade desse complexo sistema que os pune. E como eles não vislumbram nenhuma esperança de que um dia serão aceitos nessa sociedade, não lhes resta outra alternativa senão organizar-se e reunir suas forças, para enfrentar a opressão do Estado. Foi assim que nasceu o PCC (Primeiro Comando da Capital), como um "partido" destinado à defesa dos direitos dos presos. Rapidamente esse partido cresceu muito e, aos poucos, foi adotando práticas violentas, na busca de seus direitos e na exigência de fidelidade por parte de seus adeptos.

Se quisermos compreender mais a fundo essa onda de conflitos, temos que ouvir e tentar compreender a leitura que dela fazem aqueles que foram segregados pela sociedade.Tive oportunidade de ouvir de membros do PCC e de suas lideranças coisas muito interessantes, que nos fazem refletir sobre toda essa história de conflitos. Transcrevo a seguir alguns trechos:

"Nós não somos contra a ressocialização. O que não admitimos é traição... Não nos opomos a que preso algum queira se ressocializar, queira participar de trabalhos propostos pela direção do presídio. O que deve haver é um entendimento prévio."

"O mais importante de tudo, na relação entre o Estado e as facções, é o diálogo. Temos que dialogar. Afinal, nós somos todos seres humanos, que temos interesses humanos, pensamos, sabemos conversar."

"O PCC está crescendo muito. A gente não sabe onde vai parar isso. E há o risco de se chegar a uma verdadeira guerra com o tempo. Há necessidade das autoridades, do pessoal do sistema, conversar mais com a gente. Porque a gente, levado às vezes pela emoção, acaba fazendo as coisas sem pensar muito nas conseqüências. Então há necessidade de alguém orientar a gente e dizer que, se a gente puser a mão aqui ou ali, vai acabar "queimando a mão".

Enfim... qual a solução? Não há como se falar em solução. Poder-se-ia falar em busca de novos caminhos. Por meio desses fatos chocantes, os degradados conseguem gritar "nós existimos, nós ainda existimos e temos uma identidade e uma força". Ora, quem sabe talvez se possam buscar novos rumos, se nós aprendermos a ouvir essas pessoas. Quem sabe, se nós tentarmos substituir o jogo do embate entre as irracionalidades pela construção de um diálogo entre as racionalidades, talvez novos rumos comecem a despontar. Novos rumos... nos quais, de qualquer forma, dificilmente os conflitos deixarão de existir, enquanto existir o cárcere, ao menos se aplicado dessa forma irracional, seletiva e discriminada, como sempre aconteceu.


Alvino Augusto de Sá é professor da Faculdade de Direito da USP, membro associado do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e psicólogo aposentado da Secretaria da Administração Penitenciária do Estado de São Paulo

Fonte: Folha de S. Paulo, 17/05/2006

terça-feira, 16 de maio de 2006

O dia em que o morro descer e não for Carnaval

Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro


O dia em que o morro descer e não for carnaval
Ninguém vai ficar pra assistir o desfile final
Na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu
Vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil
(é a guerra civil!)

No dia em que o morro descer e não for carnaval
Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral
E cada uma ala da escola será uma quadrilha
A evolução já vai ser de guerrilha
E a alegoria um tremendo arsenal
O tema do enredo vai ser a cidade partida
No dia em que o couro comer na avenida
Se o morro descer e não for carnaval

O povo virá de cortiço, alagado e favela
Mostrando a miséria sobre a passarela
Sem a fantasia que sai no jornal
Vai ser uma única escola, uma só bateria
Quem vai ser jurado? Ninguém gostaria...
Que desfile assim não vai ter nada igual
Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga
Nem autoridade que compre essa briga
Ninguém sabe a força desse pessoal
Melhor é o Poder devolver à esse povo a alegria
Senão todo mundo vai sambar no dia
Em que o morro descer e não for carnaval

Terça-feira de cinzas

Manhã de cidade esvaziada, movimento muito abaixo do normal, clima geral de ressaca de um não-carnaval onde o morro, efetivamente, desceu. E tenho que me confessar verdadeiramente aterrorizado.

Aterrorizado com a irresponsabilidade e a falta de mínimo compromisso ético de veículos de comunicação de massa, concessionários de serviço público, a disseminar indiscriminadamente um sem número de boatos com o intuito único do faturamento comercial. Esses deveriam ser os primeiros bandidos a serem presos.

Aterrorizado com a facilidade com que uma população inteira, capitaneada por uma elite com acesso a automóveis e computadores, se deixa irracionalmente levar ao estado de pânico; seu absoluto estranhamento e despreparo em relação ao mundo de violência que domina o cotidiano de noventa por cento da população brasileira.

Aterrorizado pelo desfile de autoridades e pseudo-analistas em dezenas de depoimentos absolutamente - quero repetir: ABSOLUTAMENTE - incapazes de passar da estrita superficialidade dos fênomenos ocorridos, tratando de reduzí-los a implicações e explicações de cunho administrativo-gerencial, a única lógica que a sociedade coisificada parece capaz de compreender. Debater sobre formas e modelos desprovidos de conteúdo material é o que eles sabem, incapazes de lidar com contradições gritantes de forma minimamente operacional. Que fazem diagnósticos franceses, advogam soluções estadunidenses, sem perceber que nossa sociedade tem muito menos em comum com Holanda e Canadá do que com Ruanda ou Burundi.

Aterrorizado pelo fato de que nem a de certa forma inédita e generalizada eclosão de um estado extremo de violência possa dissuadir a média da opinião pública da idéia suicida de que a repressão deva ser intensificada. De que as pessoas continuem a pedir mais e mais violência e não percebam que é precisamente a inexistência de controles e limitações racionais do modo de proceder do aparelho repressivo que gere um campo de disputa onde vencerá o mais apto a dominar esses modos de atuação. Quando o estado usa irracional e ilimitadamente a violência - de cujo uso deveria deter o monopólio justamente por usá-la de forma estritamente racional - joga-se em uma batalha a priori perdida: os "inimigos" serão sempre mais numerosos, estarão sempre em posição geográfica provilegiada, mais disseminados, mais escondidos, mais motivados e com menos a perder.

Aterrorizado pela incapacidade das pessoas mais próximas em compreender que o clamor por uma interpretação que leve em conta a estrutura violenta da sociedade brasileira, baseada na hierarquia, no privilégio de castas e estamentos e historicamente mediada pela repressão, não configura sociologismo despreocupado de resolver as questões emergenciais que se põem para o reestabelecimento da normalidade social. Mas que, ao contrário, num momento agudo de crise, só um esforço profundo para compreender os complexos processos econômicos, políticos e simbólicos é via apta à reconstrução de alguma racionalidade capaz de desviar a rota deste nosso trem desgovernado rumo à completa dissolução das formas civilizadas. Falando na linguagem direta que a situação exige: é preciso dialogar e se entender com a bandidagem, não para se curvar quando a situação não tem mais remédio, mas para estabelecer padrões mínimos de interlocução que ponham frente a frente as forças sociais que eles representam, de um lado, e o estado de direito, de outro. É hora de encararmos que as massas excluídas, das quais a criminalidade é somente uma das vozes (a mais poderosa, por óbvio), representam uma força social presente e efetivamente constitutiva do modelo sócio-econômico que criamos e não uma anomalia na ordem constituída que se possa enfrentar reprimindo. E como tal merecem respeito, senão por sua dignidade humana abstrata, pela capacidade que adquiriram de fazer valer seus interesses, língua que a sociedade capitalista entende bem.

Aterrorizado com a passiva perplexidade das forças políticas sinceramente comprometidas com a transformação da sociedade brasileira, sua completa incapacidade de enxergar as formas presentes de negatividade que dominam as sociedades capitalistas periféricas, presas a diagnósticos historicamente desatualizados e a práticas políticas estratégicas elaboradas em face de realidades hoje superadas, se é que em algum dia tiveram lugar entre nós. Incapazes que são de perceber como as formas de opressão social e de destruição do indivíduo há muito deixaram de se restringir à extração da mais-valia, não vêem que não é mais o proletariado a encarnação da negatividade que move dialeticamente a História, muito menos que esse movimento possa não nos levar aonde pensávamos que levaria. Ignoram a complexização das formas opressivas que ensejam no substrato simbólico coletivo a identificação das vozes da resistência indistintamente com o PCC, Che Guevara e Osama Bin Laden. Enquanto estamos preocupados em ganhar os congressos estudantis e dirigir as entidades sindicais, o bonde da História está a depositar em outras mãos as forças de dissolução da ordem burguesa.

Este espaço propõe-se há quase dois anos e meio a falar de cultura. E é de cultura que se vai continuar a falar, é de cultura que se PRECISA falar, antítese única e possível da barbárie.

sexta-feira, 12 de maio de 2006

Cidade nua

O prefeito gato de São Paulo - aquele que foi alçado ao cargo graças aos otários que votaram na lebre, no estolionato eleitoral mais anunciado do século - encaminhou esta semana à Câmara Municipal projeto de lei contra a proliferação da poluição visual. Basicamente, trata-se da regulamentação da publicidade em outdoors, fachadas, prédios comerciais e espaços públicos em geral, num projeto que tem sido considerado amplo e rigoroso. Aproveito o ensejo para continuar uma série de idéias que venho lançando ao vento neste espaço de tempos para cá, em relação a esta cidade em que, a despeito de com ela pouco me identificar, nasci e morei a vida inteira.

É claro que já não era sem tempo. Não conheço do projeto mais do que os jornais publicaram, mas no ponto em que nos encontramos, qualquer regulação parece a princípio melhor que a barbárie geral; e não é por outro motivo que a proposta encaminhada soa rigorosa. Como, aliás, em geral no que atine à fúria devoradora do capitalismo que, deixada à própria sorte, não deixa pedra sobre pedra. Não obstante, a questão remete a uma outra, mais complicada: o que veremos, de verdade, quando o rei estiver nu? Tiradas as placas, cartazes, faixas, letreiros, luminosos, o que restará para ser visto?

Coloco a indagação porque sinto há anos na pele os efeitos da síndrome autofágica que assola muitos bairros tradicionais da cidade, sobre o que meu irmãozinho Marcão Gramegna poderia melhor discorrer. A especulação imobiliária tem destruído bairros inteiros para erguer os seus monstruosos arranha-céus, varrendo do mapa formas arquitetônicas tão diversas quanto singulares, que exprimem a distinta origem e desenvolvimento dos variados núcleos pré-urbanos da metrópole que acabaram por posteriormente se agrupar. É muito diversa a história social e econômica de bairros como Mooca, Santo Amaro, Penha, Lapa, Santana e tantos outros tão separados entre si como muitas cidades do interior paulista não o são.

Destruindo as formas habitacionais que refletem as formas específicas de sociabilidade que caracterizaram esses lugares, por óbvio também as distroem em si mesmas. Como resultado, os modos tradicionais de convivência, o jeito específico de morar, até os diferentes acentos lingüísticos vão sendo triturados nessa grande máquina de moer gente, transformando tudo numa pasta informe dominada pelas formas mais impessoais e formalizadas do modo de vida da burguesia estúpida que se apropria ilegitimamente desta cidade que não lhe pertence. Ou isso, ou a periferia judiada, abandonada, sem serviços, sem infra-estrutura, sem opções de cultura, lazer ou trabalho: violenta.

Vi isso acontecer com as Perdizes, onde nasci e cresci. Bairro de origem semi-rural, com um núcleo de população negra culturalmente ativo, berço de muitos bambas que fizeram do próximo e famoso Largo da Banana o seu palco. Até os anos oitenta, um lugar de classe média onde as pessoas se encontravam na padaria, na farmácia, no mercado do Seu Godofredo, na esquina de Turiaçu com Ministro Godói – vejam vocês... Hoje, um amontoado de prédios imensos, naquela coleção conhecida de mau gosto que vai do néo-colonial-brega até uns simulacros pseudo-modernistas com seus superapartamentos de noventa metros quadrados e piscinas, academias, xópim center, tudo para o cidadão não ter que sair na rua – esse espaço horroso e hostil (ô, Damatta!). Com a Pompéia, originalmente um bairro operário e da pequena burguesia, Santana, Tatuapé etc. etc. a mesma coisa. E assim será, lamentavelmente com a minha querida Vila Romana, se algo não for feito urgentemente.

Desde que mudei para o bairro há quatro anos, várias fábricas já sucumbiram para dar lugar a edifícios. Na esquina da casa de mamãe, na Rua Fábia com Duílio, um quarteirão inteirinho de pequenas casas de uma antiga vila operária foi posto abaixo. No quadrilátero onde ficava a fábrica da Petybom, da família Matarazzo, que cheirava a biscoito assado a três quarteirões de distância, três torres de trezentos e sessenta (!) apartamentos cada uma, de propriedade de um dos orgulhos da cultura nacional, a grande (o quê mesmo?) Adriane Galisteu. Por causa desse monstro, a feira tradicional da Rua Fábia foi mudada de lugar, obviamente para não atrapalhar a saída dos carros importados da garagem do condomínio. Duas quadras para lá, a fábrica Cardo-Brasil está no chão desde o fim do ano. Em seu lugar teremos o orgulho de contar com o NYC – New York Center, cujas virtudes são anunciadas por um panfleto simulando a diagramação do New York Times: "o charme da Vila Romana com as comodidades de New York"...

Isso tudo, meus caros, é para dizer que não adianta patavina a prefeitura felina de São Paulo preocupar-se com a poluição visual se a cidade acima de qualquer coisa não assumir uma atitude de auto-preservação. Não conheço caso que remotamente se assemelhe ao da capital paulista nas muitas cidades onde andei por esse Brasil e sequer tenho notícia que em outros bastiões do capitalismo avançado permita-se um semelhante genocídio cultural. Senão, o que restará para se ver e preservar quando os ícones da publicidade forem botados abaixo? Ou será simplesmente mais uma jogada dos vilipendiadores da cidade para sobrevalorizar os espaços específicos – lixeiras, pontos de ônibus, relógios de rua etc. - que passam a ser os destinatários exclusivos das peças publicitárias?

quinta-feira, 11 de maio de 2006

Bidu

Hoje pela manhã vim para o trabalho ouvindo a antológica gravação da deslumbrante ária Cantilena da Bachiana nº 05 de Villa-Lobos pela soprano brasileira Bidu Sayão, que hoje completaria 104 anos. Ela que arrancou suspiros até de Mário de Andrade, crítico implacável do jeito lírico de se cantar destruindo a característica fônica de cada idioma, particularmente detestável em relação ao português brasileiro, cuja sonoridade sabidamente deslumbrava o grande pensador: "Ela tem uma voz admirável, de encanto impregnante. Que frágil tenuidade vibra tão frágil e intensa no seu cantar. Prova que uma alma de ave pode escalar na paixão". E realmente parece não haver dúvida de que a grande sedução exercida pela cantora sobre platéias exigentes do mundo inteiro deva ser creditada menos à sua exuberância técnica do que a uma certa suavidade brasileira que ela conseguiu magistralmente preservar.

Não sou mais, definitivamente, um fã ardoroso do bel-canto e nem tenho pretensão a qualquer julgamento mais autorizado. Mas essas divagações remeteram-me a uma conversa recente sobre a nova geração de cantoras populares brasileiras, que parece não ter mais fim. Em cada giro pela noite, em cada ligada de rádio (nas pouquíssimas estações decentes, por óbvio), em cada visita às lojas de disco, em cada conversa com os amigos atentos, novas descobertas. Entre surpresas boas, outras nem tanto, espanta sobretudo a quantidade. Não me atreveria fazer uma estatística, mas a impressão que fica é que para cada cantor, surgem cem moças competentes em maior ou menor grau.

É claro que o barateamento dos custos de produção, aliado ao desenvolvimento dos meios de comunicação independentes, sobretudo a Internet (questão que já tratei em outras oportunidades), permitiram um acesso muito mais "democrático" ao registro fonográfico. Por outro lado, a bárbara evolução das técnicas de gravação permite aparar muito mais facilmente as arestas de quem não tem a capacidade de uma Elisete de gravar um disco com doze faixas de fio a pavio sem errar um compasso; de modo que é no palco que a gente acaba tendo melhor oportunidade de separar o joio do trigo. Com tudo isso, o que me chama mais a atenção é que num universo tão vasto somente umas poucas vozes acabam por nos tocar mais fundo. Porque, ao fim e ao cabo, tudo vai ficando muito parecido, as vozes, as técnicas (sobretudo), as interpretações. Espantosamente, é o reflexo do que acontece, muito mais acintosa e deliberadamente, é claro, no segmento mais - digo para ser delicado - comercial. No campo sério e honesto os repertórios podem ser bons, os arranjos corretos, as execuções bem feitas. Mas tem faltado alma. Uma espécie de versão canora de uma burocratização generalizada das formas sociais que, se já era denunciada há mais de cem anos nas fronteiras mais avançadas do capitalismo, parece ter chegado pra ficar entre nós desde a década passada, a destroçar o que nos resta de singularidade resistente. E assim a gente vai reunindo as moças segundo a "escola" a que vão se filiando: escola Mônica Salmaso, escola Marisa Monte e por aí vai.

Difícil precisar em termos objetivos o que diferencia essas poucas intérpretes. Certamente não são quesitos aferíveis tecnicamente como afinação ou divisão, nem sequer escolha de repertório, como já disse. Arriscaria que é mais um "querer dizer algo", que logicamente pressupõe que se tenha efetivamente algo a dizer. Algo que compreende uma sensibilidade específica não somente para o que materialmente se ouve e reproduz, mas para toda a gama de significações que enreda uma obra de arte musical num sem fim de relações mutuamente imbrincadas e determinantes que compõe o universo cultural em que se insere; aliada, obviamente, a uma capacidade de traduzir essas percepções no ato de cantar.

Graças a Deus, tem gente por aí com muita coisa a dizer, querendo e sabendo como. Algumas tem e sabem como, mas ainda não resolveram de verdade se querem. Outras tem e querem e estão procurando a forma justa - e hão de chegar lá, sem dúvida. Mas temos que ficar atentos. Salve Dorina, Andréa Pinheiro, Maria Martha, Carminha Queiroz e tantas outras que, na estrada há um pouco mais de tempo, tiveram a coragem de nadar contra a corrente da mesmice e instalaram seu canto no pódio alto que o fará ressoar através do tempo. Que venham Fabiana Cozza, Iracema Monteiro, Juliana Amaral, Railídia, Graça Braga, Karina Ninni – só pra não ir muito longe – com as suas verdades tão diferentes, tão ncecessárias. E que venham elisetes, elzas, elises, claras, que o Brasil precisa de suas mulheres.

terça-feira, 9 de maio de 2006

Vô Laurindo

Laurindo sobe o morro gritando:
- Não acabou! A Praça Onze não acabou!
Vamos esquentar os nossos tamborins!
Procura a porta-bandeira
E põe a turma em fileira
E marca o ensaio pra quarta-feira


(Laurindo, samba de Herivelto Martins
para o carnaval de 1943)


Quero hoje vos falar de uma outra São Paulo. Não sobre aquela "estranha senhora, que hoje sorri e amanhã te devora", como diria o Chico, mas sobre esta mãe afável - fumante, é verdade; boêmia, é verdade - que bem ou mal nos nina e alimenta, malgrado sufoque e envenene, desde as próprias entranhas. Não desse gigante de obsessões e eficiências impessoais, tão paradoxalmente ciosa da aparência e destruidora de si mesma; esquizofrênica, coitadinha. Uma cidade que agoniza nos seus butiquins e padarias, nas suas vendas e freguesias, de Ó a Z. Com seus personagens reais, vivos (sim!) e dignos do nosso respeito, da nossa audiência.

Assim ele foi. Na verdade, o vi uma única vez, assim "cos' óio". Mas soube dele demais, pela boca de seu neto, camarada do peito, madeira de lei daquela cepa bem veiada, doçura sem bestagem, fibra sem arrogância. Apaixonado pelo velho, pudera: personagem daqueles que não se fabrica, respeitado pela vizinhança - rei da Cachucha! - mais conhecido que nota de um, bom tomador, gozador da vida, pai de família e trabalhador, na medida exata que faz dessa gente de verdade o arreio que não deixa esta terra de Piratininga descer de vez a ladeira.

Esta besta que vos escreve mil e uma vezes ficou de tomar umas cachaças com o "Vô", lá na Parada Pinto, no mesmo butiquim de anos, mas por qualquer coisa se enrolava e não aparecia. Um belo dia, no Jaçanã, não teve jeito: batendo o bolão dos craques, o véio Laurindo ia ali, devagar, tomando as suas, soltando das suas, exercendo aquele estágio da convivência que a sabidice ensina a não deixar passar. Assim como a gente vai tentando não deixar passar a bola que nos foi enfiada, passe milimétrico entre os zagueiros. E vai vendo que, nem que a gente não queira, os passantes vão nos colocando na cara do gol, graças a Deus!

Na devoção do meu parceirinho Fernando pelo seu vô Laurindo reconheço minha paixão derramada pelos meus velhos, minha dependência que hoje é saudade, herança e "responsa" cotidianas. Vendo o quanto eles vivem e revivem dia-a-dia em nós, naquele encontro marcado de gerações do qual nos falam o Benjamin e o Sabino. E num butiquim improvável que é ao mesmo tempo na Cachoeirinha e no Bom Retiro e na Santa Ifigênia é que vou me reconciliar com a cidade que me escorre pelas chagas, entre um trago de cachaça, uma conversa na moça e um tapa na orelha de um desavisado qualquer.

Pois é. O "camarada Laurindo", como o chamaram Wilson Batista e Haroldo Lobo (acho que ele não ia achar ruim e o neto certamente vai gostar) num outro samba, foi convocado semana passada pro ensaio lá do G.R.E.S Unidos do Firmamento. E com tanta gente boa reunida pro furdunço, não seria logo ele a fazer forfait, né? E por esses mistérios costurados por uma outra História, enquanto a gente fica por aqui se segurando, negando o que nos é negado, foi pra tendinha do terreiro celestial tomar uma com o vô Amigo, enquanto o vô Dante metia uma sete na caçapa do fundo. Saravá!

quinta-feira, 4 de maio de 2006

Recidiva

Meus amigos, amanheci hoje com uma amarga e dolorosa ressaca. Moral, sobretudo. E vou valer-me da sensação de anonimato que este meio propicia (falsa, pois conheço pessoalmente todos os quatro leitores) e colocar-me diante de vocês para buscar ajuda de uma forma que, se não é ideal, os nossos dias vêm mostrando ser a mais eficaz. Perdoem-me, de antemão e mais uma vez, o tom confessional que essas linhas passam a assumir, cujo teor pode surpreender até os meus mais íntimos.

Luto, desde 1999, contra um vício que me atormentou por anos. Que roubou-me preciosos momentos da juventude, custou alguns relacionamentos, interferiu nas amizades, no trabalho, na família até. A história é bem conhecida de vocês. A coisa começa como uma distração, um pequeno prazer para atenuar um pouco as agruras da arena da luta real de todos os dias. Depois vai crescendo, vai te dominando sem você perceber, até que não se vive mais sem aquilo, não te sai da cabeça um só momento, consome seu tempo, suas atenções, seus desvelos. Mal você está saindo de uma rodada braba, teu pensamento está na próxima, que parece não chegar nunca. Isso, é claro, interfere diretamente no teu humor e, dependendo dos resultados, te destrói por dias a fio.

A decisão de abandonar veio de um dia que eu vi um cidadão morrer a poucos metros de mim. Nesse momento prometi a mim - há testemunhas! - que eu não acabaria daquele jeito. E desde então tem sido dura a batalha, por anos a fio, gradualmente tentando arrancar da minha mente aquela obsessão doentia. Fui conseguindo, devagar, as recaídas ficando mais raras, a angústia mais controlada. Não que a falta daquela sensação de se transportar para uma dimensão que é de sonho, que se apresenta tão épica diante da nossa banalidadezinha cotidiana, não me corroesse. Mas eu queria vida: cuidar da família, estudar, trabalhar...

É por isso, meus caros amigos, que a minha dor nesta amanhã foi tão aguda; a sensação de ter novamente capitulado, quase insuportável. Caí no erro tão comum, infringi a proibição mais elementar, desprezei o alerta de que nunca se pode confiar no auto-controle quando a irracionalidade fala mais alto. Julgava-me curado, e por isso, certamente, a derrota parece ter doído como nunca. Tudo voltou como num terrível pesadelo recorrente: o desânimo, a irritação, a agressividade, a revolta; e eis-me aqui completamente impotente.

Peço a ajuda de vocês meus amigos, porque não sei o que será de mim, de novo, daqui para frente. Mas tenho que confessar que ontem, de novo, meu céu turvou-se depois de longa primavera: assisti inteirinho, de cabo a rabo, de fio a pavio, roendo-me como nunca, o jogo da Sociedade Esportiva Palmeiras.

quarta-feira, 3 de maio de 2006

História

Me perdoa meu amor
Me perdoa por me dar, assim, inteiro.
Se eu não fosse, assim, inteiro teu
Se não fosse tão completamente que me desse
Não precisaria dar-te

Tão pouca força
à custa de tanta rudeza
Tão pouca lucidez
à custa de tanta arrogância
Tão pouco...
à custa de tanta impaciência

Porque tudo está em mim
Em mim todo
E o contrário

Se eu não fosse, assim, completamente teu
Se não fosse, assim, todo inteiro que me desse
Não poderia dar-te

Todo o meu amor
à custa de nenhuma força
Toda a minha devoção
à custa de nenhuma lucidez
Toda a História. Toda
à custa de nem um pouco...

Como dou
Tudo: o Tempo
À custa nenhuma

(para Stefânia)