quarta-feira, 26 de março de 2008

A mais secreta


A existência de sociedades secretas povoa a imaginação dos povos há muitos e muitos séculos. Geralmente associadas a conhecimentos ocultos de caráter iniciático, hierarquias e fraternidades, sua existência é registrada em culturas que vão do oriente extremo ao Novo Mundo, passando por inúmeras nações européias e africanas desde a antigüidade.

No ocidente europeu as mais conhecidas foram a Ordem Rosa Cruz e a Maçonaria, ambas com origens históricas extremamente controvertidas e cercadas de lendas infindas que localizam suas origens em tempos-lugares tão distintos quanto o Egito de Amenophis IV e a Alemanha reformista dos séculos XV e XVI. Seja como for, é fato que a Maçonaria veio dar nas terras tupiniquins desde os tempos da presença da família real portuguesa, tendo exercido enorme influência política durante os reinados dos dois pedros (José Bonifácio como exemplo supremo – um dos mais poderosos políticos da história brasileira e destacada liderança maçônica) e, mais adiante, boa parte da República a dentro. Também do século XIX é a fundação da famosa Bucha, poderosíssima fraternidade surgida despretenciosamente sob as arcadas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da qual fizeram parte nove em cada dez figuras influentes da República Velha (dizem que dos primeiros presidentes brasileiros somente Epitácio Pessoa não teria sido confrade).

De toda sorte, se a Bucha perde grandemente seu poder a partir da era Vargas e a Maçonaria ainda anda por aí tentando suas influências - incomparáveis aos tempos d’antanho - hoje revelarei em primeira mão para a seletíssima confraria dos leitores desta semi-secreta revista os traços impressionantes da presença da mais misteriosa de todas as sociedades conhecidas na história da humanidade: o Primeiro e Único Comando das Moças Bonitas.

Não se sabe como ela opera, nem como se organiza, mas a verdade é que são assombrosos os exemplos de seu altíssimo poder de mobilização. Suas ações coordenadas em larga escala impressionam e até inspiram, dizem, organizações de todas as partes do globo, das beneméritas às criminosas. Enganam-se os que acreditam ser a igreja Católica a instituição mais longeva e disseminada do planeta! E o que é mais impressionante: embora seja inegável a sua presença em escala mundial, malgrado não se encontre praticamente quem não tenha em algum momento tido provas inequívocas de uma presença acachapante, sua atuação atinge graus de discrição inigualáveis, ao ponto de haver quem chegue (sem seriedade, é claro) a duvidar de sua efetiva existência.

Não eu, por certo. Ainda mais porque, por obra de uma qualquer sina insondável, seja um dos mais freqüentemente atingidos pelas históricas ondas de ataques orquestrados. Ignoro as razões ocultas dessa constatação estatística, embora desconfie tenham a ver com o fato de circular renitentemente, ao longo da vida, por áreas-alvo conhecidas (uma das poucas informações confiáveis detidas pelos centros de inteligência) como a Avenida Paulista, o Boulevard 28 de Setembro e as Pontifícias Universidades Católicas daqui e dalhures (despiciendo apontar a coincidência de siglas...).

Os homens, por certo, terão maiores e mais evidentes provas empíricas da presença desta impressionante e poderosa organização, embora muitas vezes os alvos primários sejam também as outras moças - ainda que estas tenham, via de regra, mais capacidade de defesa, por inegável afinidade alquímica. Os objetivos últimos, desses nunca ninguém conseguiu obter a mais remota pista. Não se sabe como elas se comunicam, sob que ordens agem ou a quais comandos atendem, mas o fato é que quando você de súbito se apercebe de uma em atitude inusual, a sina do seu dia está irremediavelmente traçada.

Não há possibilidade de contrapor-se ao seu poder. O pacato cidadão põe-se a caminho do trabalho absolutamente indesejoso de qualquer emoção maior que o “bom dia” do ascensorista; mas ele não tem a menor disposição sobre os destinos de seu humor. No momento em que põe os pés no ônibus monocórdio de todas as manhãs, a primeira lhe sorri, assim com os olhos só. Pronto! Daí por diante, todas (eu disse T-O-D-A-S) por-se-ão a perturbar a sanidade inutilmente esquiva do pobre diabo, sob as mais sutis formas de tortura. “Com que motivos?”, perguntareis. Desconheço. Outro dia típico e particularmente duro é o das não-roupas: braços, colos, coxas, insinuações desbordantes de seios e bundas e lá se vai a manutenção da ordem púbica, como dir-se-ia num butiquim qualquer da Tijuca. NUNCA se trata de uma atitude isolada, importante registrar! São ondas... Às vezes, é por temporadas a fio que manobram. Desaparecem, simplesmente. Os olhos nossos vagam, então, por sete mil mares ansiosos de alguma beleza de se ver. Em vão, não preciso dizer. Escondem-se: nenhum traço, nenhuma esperança. De enlouquecer. Quando vão voltando, Deus nos acuda...

A intenção sincera e humilde dessas mal-traçadas é apenas fazer o registro histórico, visto que pouco há para se fazer e gente muito mais apta vem-se debruçando sobre o problema. Um dos maiores estudiosos do riscado, meu mano Julio Vellozo, assevera que há evidências sutis, mas robustas, de que alguns grandes movimentos da história universal tenham-se desencadeado a partir dessas ações conjuntas em escala planetária, em épocas em que sequer sonhava-se com a decantada globalização. A derrota de Napoleão e a deflagração da Grande Guerra seriam exemplos recentes incontestáveis, segundo insiste. No passado mais distante, estariam por trás tanto da decadência do Império Romano quanto da tomada de Constantinopla pelos Turcos.

E nosso pobre Karl – inocente! – perdendo seu tempo com as contradições entre os modos de produção e as forças produtivas. “Limitações ideológicas”, posso ouvir daqui alguém maldando...

sexta-feira, 14 de março de 2008

Chove chuva...

...chove sem paraaaaaaar
(Jorge Ben Jor)



(Sempre me constrangeu um pouco essa construção: a chuva, no caso, é sujeito ou objeto? Porque, de regra, não aprendemos que o verbo é intransitivo e o sujeito inexistente? Chove. A chuva do verso esculhambou completamente a empáfia do chover... Caramba, não era nada disso que eu queria dizer; aliás, queria dizer alguma coisa?)

O fato é que chove. Chove e estou preso aqui. E por isso, muito provavelmente, tenho que enrolar algum assunto para a crônica de amanhã - que será hoje quando estivéreis lendo. E vós, que não vos apercebeis das coisas, acharão tudo estranho e sem sentido. Chove uma chuva canalha, sórdida, sim senhor. E completamente alheios a essa canalhice essencial, impedidos de voltar o olhar para o passado ululante, vós, como de hábito, lançareis a vossa condenação surda e inapelável: “Não sabe o que diz, coitado. Está, afinal, como os outros...”

Porque não percebestes que as chuvas, como as moças, têm múltiplos e imprevisíveis temperamentos? Outro dia mesmo reparava numa chuva elegante, muito convicta no seu chover solene, mas de que leveza... Luminosa, até! Uma chuva digna de todos os deslumbres. Há as chuvas melancólicas, sentimentais, que nos arremessam a estados desaparecidos do ser e despertam as ternuras mais sinceras. Essas, via de regra, são ligeiramente perigosas, como o tudo o mais que se põe a cavocar passados tão densamente povoados. Já as tempestades, as há circunspectas como uma primeira-ministra inglesa, avassaladoras como uma Gilda de Rita Hayworth, e até mesmo as petulantes, de uma agressividade desnecessária e insolente, como essas tantas que deparamos pelas instâncias diversas da burocracia nacional.

Nomeado que fui para a missão de singrar os mares revoltos da existência sem direito a rechaçar mau tempo, vou tentando driblar minha incompetência, num jogo de corpo aprendido e previsível de zagueiro grosso, mas veterano. Na base da catimba, mantenho a cabeça erguida, apesar de uma bola entre as pernas aqui, um chapéu ali, procurando honrar a camisa. Ainda que hoje dispute a liga barbante, ao longo da carreira enfrentei-as todas, as petulantes, as avassaladoras, sentimentais e elegantes. Não vou dizer que não tenha engolido água, nem mesmo posso negar que um braço salvador tenha tido a fortuna de estar no lugar certo, hora exata. Mas cheguei aqui, ora essa, e me arvoro no direito de não ter de tolerar certas coisas.

Pois chove hoje, meus amigos, uma chuva simplesmente, insuportavelmente calhorda; destituída de mínimos escrúpulos que lhe pudessem mitigar a vileza, a disposição única de existir encastelada em sua velhacaria. Nem roreja, nem troveja: chove indiscriminadamente. E os calhordas, de hábito um tanto mais dissimulados, acobertados por sua chuva cúmplice, aproveitam a disseminação da patifaria para adrede exercer o seu ofício desprezível. Geladas as possibilidades de reação, ilhado e aviltado o artífice em seu acuamento, não podem, entretanto, impedir a vingança única, a satisfação íntima possível: “Calada a boca, resta o peito... Calado o peito, resta a cuca”.

No último dia, o Senhor fez a crônica; e viu que isso era bom.

terça-feira, 11 de março de 2008

Samba Popular Brasileiro (cont.)

Parte II - O samba pede passagem


Inegavelmente, de todas as formas musicais populares do Brasil que atingiram efetivamente o status de "nacionais", no sentido que aqui estamos empregando, o samba atingiu o cume mais elevado, possivelmente por exprimir com maior perfeição o amálgama das diversas correntes tributárias do caudaloso caldo da cultura nacional, bem como a síntese dialética mais bem acabada entre a singularidade expressiva e a aceitabilidade universal. Isso sem negar, por óbvio, a preponderância política e econômica do Sudeste brasileiro - onde o samba se desenvolveu até atingir a forma urbana moderna que conhecemos - como polo irradiador de cultura, inclusive com indisfarçado patrocínio estatal durante a era Vargas. Essa disseminação é visível, perfeitamente identificável em todo o território nacional, inclusive nas que padeceram maiores dificuldades de integração.

O samba constituiu-se num dos traços mais autênticos e genuínos da cultura brasileira. Forma de expressão musical essencialmente negra em suas matrizes, símbolo da contribuição africana na formação da nação brasileira, e que ao mesmo tempo traduz como nenhuma outra os traços mestiços desse povo que se forma do encontro de muitas etnias. O samba espelha de maneira maravilhosa a incorporação dos principais legados culturais da africanidade para a identidade brasileira, num exemplo portentoso de afirmação e síntese dialética na construção dos traços marcantes da face nacional.

Mais que um gênero musical, uma dança ou uma festa, o samba representa verdadeiramente uma cultura, enquanto um modo de ser, de se comportar, ver o mundo, interpretá-lo e reexprimí-lo. Repousa sua força e vitalidade na expressão desse jeito de ser no mundo, próprio do povo brasileiro. E se ele exprime o encontro das culturas e das nações que formam o Brasil, inegavelmente é por sua matriz negro-africana que se encontra tão impregnado da idéia de tradição (do verbo latino trado = entregar, transmitir). Tradição que não se pensa como algo estanque, que não evolui, mas pelo contrário, que se transmite e se transforma, não perdendo a referência de suas fontes primárias.

Da cultura africana o samba herda, pois, a consciência de que os indivíduos não existem isoladamente, mas relacionados verticalmente com os antepassados e descendentes, e horizontalmente com a comunidade a que pertence. O indivíduo constitui-se, na cadeia das forças comunitárias vitais, como elo vivo de ligação entre os antepassados e os descendentes. Daí sua responsabilidade na guarda da tradição recebida e sua transmissão às novas gerações, acrescentando-lhe a sua força vital, traço distintivo de sua presença no mundo. O universo histórico e cultural em que o samba se insere, portanto, o credencia como espaço privilegiado de afirmação da preponderância da cultura como "cimento" do substrato simbólico indispensável para a comunicação social possível e, conseqüentemente, para construção das teias de resistência à lógica impositiva, impessoal e destrutiva da acumulação capitalista.

Escrevia eu, alhures: “Como sempre lembra mestre Nei Lopes, o samba é um saber iniciático, no que espelha inequivocamente, aliás, a matriz cultural africana. Não se compreendem seus significados, suas regras e sobretudo seus mistérios, se não se progride na experienciação paulatina desta ampla gama de sutilezas que permeia as relações, os rituais, os ambientes em geral desse universo. Portanto, para que o samba possa aumentar o número de seus adeptos cativos, insusceptíveis aos ventos efêmeros dos modismos, é preciso que se ofereça a este publico que se aproxima do “produto final” do mundo do samba a procura de entretenimento condições para que ele compreenda os diversos outros elementos a envolver esta expressão cultural tão singular. Se hoje o samba se afirma, estribado em apoios importantes, são muitos ainda os obstáculos a transpor para firmá-lo como forma e espaço privilegiado de afirmação de um modo de viver, pensar e agir diferentes daqueles imposto pelos padrões dominantes, hoje em escala globalizada.”

A cultura do samba engendra uma forma particularmente brasileira de construção social. Nela prima a singularidade do indivíduo e de sua expressão criativa, enquanto na sociedade capitalista o indivíduo é uma parte desqualificada de uma massa informe. O sambista é sujeito da história quando constrói seu espaço de sociabilidade, de integração e de expressão singulares a partir da prática do canto, da dança, da poesia, da crítica. O indivíduo na sociedade capitalista está sujeito às regras preestabelecidas que normatizam os espaços de integração e socialização, sobre as quais ele não pode influir.

O que pode parecer mera teoria, transforma-se em vivência: quem participa de um samba verdadeiro pode experimentar, na prática, uma forma de socialização que rejeita e reinventa as regras da sociedade capitalista; pode experimentar uma das mais belas formas de funcionamento de uma estrutura social sem classes, sem o predomínio da lógica abstrata e embrutecedora do dinheiro e do poder. A roda de samba é o modo privilegiado de celebração, no sentido ritualístico de destacamento e atualização, dos elementos que compõem esse universo tão rico, tão singular e tão significativo. Muito mais do que nas gravações, nos discos, que cumprem o papel do registro histórico, na roda é que o samba vive e pode disseminar a sua força de coesão e de resistência. Ao som das palmas e da marcação dos tambores é que se faz presente e atual todo o universo simbólico e valorativo, com suas regras, seus oráculos de sabedoria, seus ritos e mitos que tanto representam para a compreensão e estruturação da própria idéia de brasilidade.

Em outra passagem do texto citado acima, completava: “O samba por todo o país vive um momento privilegiado no que tange a sua visibilidade para o público em geral. Mas a história ensina que o maior “sucesso” em determinados momentos nunca garantiu ao samba o reconhecimento efetivo e perene que ele merece enquanto expressão maior da especificidade musical brasileira. Assim, ele parece nunca ser tratado pelos porta-vozes da ‘oficialidade’ como o patrimônio cultural fundamental do povo brasileiro que realmente é, muito pelo contrário.”

Vale dizer, a expansão do consumo dos produtos musicais ligados ao universo do samba, por si só, nada garante relativamente ao histórico descaso e à marginalização marcadamente ideológica relativa ao gênero - comumente associado às classes baixas e à cultura negra (pejorativamente), quando não à malandragem e à marginalidade. Há que se proporcionar às platéias aptas a compreenderem essa forma da arte musical do povo brasileiro condições e vivências para plenamente poderem percebê-lo como expressão maior de toda uma cultura, que traduz formas específicas de sociabilidade, comportamento, ética, visão de mundo.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Condôminos

Fernando Sabino


A porta estava aberta. Foi só eu surgir e arriscar uma espiada para a sala, o dono da casa saltou da mesa para receber- me.

- Vamos entrar, vamos entrar. Estávamos à espera do senhor para começarmos a reunião: o senhor não é o 301?

Não, eu não era o 301. Meu amigo, que morava no 301, tivera que fazer repentinamente uma viagem, pedira- me que o representasse.

O homem estendeu- me a mão, num gesto decidido:

- Pois então muito prazer.

Disse que se chamava Milanês e recebeu com um sorriso à milanesa a minha escusa pelo atraso. Desconfiei desde logo que fosse meio surdo – só mais tarde vim a descobrir que seu ar de quem já entendeu tudo antes que a gente fale não era surdez, era burrice mesmo.

Conduziu- me ao interior do apartamento onde várias pessoas, umas onze ou doze, já estavam reunidas ao redor da mesa. À minha entrada, todos levantaram a cabeça, como galinhas junto ao bebedouro. O apartamento era luxuosamente mobiliado, atapetado, aveludado, florido e enfeitado, nesta exuberância de mau gosto a que se convencionou chamar de decoração. O Milanês fez as apresentações:

- Aqui é o Dr. Matoso, do 302. Quando precisar de um médico… Ali o capitão Barata, do 304 – representante das gloriosas Forças Armadas. Dona Georgina e Dona Mirtes, irmãs, não se sabe qual mais gentil, moram no 102. Aquele é o Dr. Lupiscino, do 201, nosso futuro Síndico…

Suas palavras eram recebidas com risadinhas chochas, a indicar que vinha repetindo as mesmas graças a cada um que chegava. Cumprimentei o médico, um sujeito com cara mesmo de Matoso, o capitão com seu bigodinho ainda de tenente, as duas velhas de preto, não se sabia qual mais feia, o futuro síndico, os demais. O dono da casa recolheu a barriga e as idéias sentando- se empertigado à cabeceira. Busquei o único lugar vago do outro lado e acomodei- me. A mulher do Milanês passou- me um copo de refresco de maracujá – só então percebi que todos bebericavam o refresco em pequenos goles, aquilo parecia fazer parte de um ritual, convinha imita- los. Um dos presentes, solene, de papel na mão, aguardava que restabelecesse a ordem para prosseguir.

- Desculpem a interrupção – gaguejei. – Podem continuar.

- Não havíamos começado ainda – escusou- se o Milanês, todo simpaticão – Estávamos apenas trocando idéias.

- Se o senhor quiser, recomeçamos tudo – emendou a Milanesa, mais prática. – Ali nosso Jorge, do 203, dizia que precisávamos…

- Perdão, quem dizia era o Dr. Lupiscino – e o nosso Jorge do 203, um rapaz roliço como uma salsicha de óculos, passou para o extrema. A esta altura interveio o capitão, chutando em gol:

- Pode prosseguir a leitura.

Alguém a meu lado explicou:

- O Dr. Lupiscino fez um esboço de regulamento. O senhor sabe, um regulamento sempre é necessário…

O Dr. Lupiscino pigarreou e leu em voz alta:

- Quinto: é vedado aos moradores… Espere – voltou- se para mim: - O senhor quer que leia os quatro primeiros?

- Não é preciso – interveio o Milanês: - Os quatro primeiros servem apenas para introduzir o quinto. Vamos lá.

- Quinto: é vedado aos moradores guardar nos apartamentos explosivos de qualquer espécie…

O capitão inclinou- se, interessado:

- É isso que eu dizia. Este artigo não está certo: suponhamos que eu, como oficial do exército, traga um dia para casa uma dinamite…

- O senhor vai ter dinamites em casa capitão? – espantou- se uma das velhas, a Dona Mirtes.

- Não, não vou ter. Mas posso um dia cismar de trazer…

- Um perigo, capitão!

- Meu Deus, as crianças – e uma senhora gorda na ponta da mesa levou a mão à peitaria.

- Pois é o que eu digo: um perigo – tornou o capitão. –Devíamos proibir.

- Pois então?

Ninguém entendia o que o capitão queria dizer. Ele voltou a carga:

- E imagine se um dia a dinamite explode, mata todo mundo! Não, é preciso deixar bem claro no regulamento: “Não é vedado ter em casa explosivos de qualquer espécie…”

- Não é vedado? Quer dizer que pode ter? – desafiou o autor do regulamento, já meio irritado.

- Quer dizer que não pode ter explosivos – respondeu o capitão, quase a explodir.

O capitão não sabia o que queria dizer a palavra vedado – e dali não passariam nunca se o Jorge do 203, não tivesse levantado a lebre:

- Vedado é proibido, capitão. Vedado explosivo: proibido explosivo.

- Vedado proibido?

Confundia- se, mas não dava o braço a torcer:

- Eu sei, mas acho que devíamos deixar mais claro que é proibido. Isto de explosivo é perigoso, vedado só é pouco, se vamos proibir, é preciso a palavra NÃO. Para dar mais ênfase, compreendem? NÃO é vedado…

- Continue – ordenou o Milanês.

O capitão, vedado pela própria ignorância, calou o bico. O Dr. Lupiscino continuou a leitura e em pouco já ninguém estava prestando atenção: todos concordavam com a cabeça ao fim de cada artigo, quando o homem corria os olhos pela sala, para recolher aprovação. O Milanês, a certa altura, sugeriu que interrompessem o regulamento em favor da eleição do síndico – já se fazia tarde e dali haveria de sair um síndico naquela noite. A Milanesa se aproveitou para ir lá dentro buscar mais refresco.

- Sugiro que aclamemos o nome do Dr. Lupiscino para síndico – disse uma das velhas, desta vez Dona Georgina.

- Todos aprovaram, menos o Milanês, que, pelo jeito, queria ser síndico também.

- Estamos numa democracia – falou, tentando o engraçadinho: - E sem desfazer os méritos ali do nosso preclaro Dr. Lupiscino, acho que devemos lançar mão da mais importante das instituições democráticas: o voto secreto.

- Não precisa ser secreto – sorriu Lupiscino, certo da vitória: - Somos poucos, todos conhecidos, quase uma família…

- Que acha 301? Perguntou- me o Milanês, tentando conquistar meu voto. Eu, porém, incorruptível, votaria no Lupiscino – a menos que a dona da casa, até o momento da eleição, se lembrasse de servir- me alguma coisa além de refresco de maracujá.

Disse- lhe que preferia não intervir, já que apenas representava um dos proprietários.

- O senhor não é condômino? – estranhou a bem nutrida senhora da ponta da mesa. – Então quem que está em cima de mim? Eu sou 202.

Expliquei- lhe que não era condômino – esta palavra era uma das razões pelas quais até então não tivera coragem do comprar um apartamento.

- Estou representando o 301. Em cima da senhora deve estar ali o Dr. Matoso, que, se ouvi bem, é 302.

Dr. Matoso sorriu amável concordando:

- Faço muito barulho, minha senhora?

- Absolutamente – protestou ela, levando de novo a mão ao peito. – Mal ouço o senhor à noite descalçando os sapatos e botando os chinelos…

- A senhora é 202? – perguntou uma das velhas, novamente a Dona Mirtes. – Pois então seu ralo deve estar entupido: está pingando água no banheiro da gente.

A outra velha confirmou silenciosamente com a cabeça a acusação terrível. Enquanto isso o Milanês providenciava a votação: cortou lenta e caprichosamente uma folha de papel em doze pedaços, distribuiu- os a cada um de nós:

- E a urna? Onde está a urna?

A urna seria um horrendo vaso de alabastro. Nos solenizamos ao redor da mesa, exercendo o sagrado direito de voto. Procedeu- se a apuração e o vencedor foi mesmo o Dr. Lupiscino, do 201, por esmagadora maioria: o Milanês ganhou apenas um voto, o seu próprio, naturalmente. E a Milanesa? Eu também, 301, ganhei um voto – mas não foi dela, desconfio que foi da senhora do 202, a do ralo entupido, que me proporcionava olhares à socapa. Felicitei o novo síndico, escusei- me e caí fora: ameaçavam retornar ao regulamento, e o capitão dizia:

- Por “área comuns” entenda- se: escada. Corredores, vestíbulo, entrada de serviço, garagem. E elevador, que é próprio, mas também não deixa de ser comum…

À saída notei, de passagem, que o edifício não tinha elevador.


(in Para gostar de ler - vol. 4, São Paulo: Ática, 1981, p. 36-8)

terça-feira, 4 de março de 2008

Samba Popular Brasileiro

Parte I - Música Popular: um traço de brasilidade


O conjunto das manifestações do artifício humano que exprime as vivências, representações, percepções e interpretações de mundo, no âmbito de um determinado grupo social é o que chamaremos aqui de cultura. Cultura popular, por sua vez, aquela que, não se pautando pelas regras estritas do academicismo erudito (isto é, não subjugados pelos cânones da erudição, embora por vezes possua os seus próprios, localizadamente), desenvolve-se à margem da hegemonia do grande capital, tida essa como o conjunto de sistemas, técnicas, lógicas, ideologias precipuamente voltadas para a perpetuação de um específico modo de produção, qual seja o modo capitalista. Vale dizer, a cultura não erudita que igualmente não se produz com a finalidade específica da produção de valor de troca (mercadoria).

A cultura popular, portanto, representa uma esfera da vida social onde as diferentes representações e simbolismos dispersos pelo corpo social podem se expressar e assim interagir, de modo a estabelecer as “sinapses” comunicativas essenciais para a composição de um substrato representativo comum que possibilite o entendimento entre os indivíduos. Neste sentido, podemos afirmar que quão mais intensa a produção cultural, mais entretecidos serão os universos significativos dos diferentes indivíduos componentes de um grupo social, com uma ampliação das possibilidades comunicacionais e, conseqüentemente, de resistência à planificação massificante imposta pela hegemonia.

No âmbito da cultura popular assim definida, a arte que se desenvolve sem a finalidade estritamente comercial (embora possa e deva inserir-se no mercado, até como condição de sobrevivência) chamaremos arte popular, dentro de cujo espaço está inserida a música popular lato sensu. Ainda no âmbito das definições conceituais, para efeitos práticos (não teóricos), por música popular brasileira stricto sensu entenderemos as manifestações que não as de ordem da música tradicional, de expressão tipicamente regionalizada, normalmente associadas à dança ou a funções dramáticas (de formato processional ou em forma de auto), perpetuada a partir da transmissão oral, tais como o jongo, o carimbó, o maracatu, a congada, o batuque, o tambor-de-crioula, a cana-verde, a folia-de-reis, o samba rural, a tirana etc.

A partir da singularidade dessas diversas expressões localizadas geograficamente, podemos encontrar traços comuns; possivelmente, por um lado, em função de origens assemelhadas, a partir de elementos da música africana, indígena e européia, entre outras (mas diferenciadas a partir das peculiaridades do processo de amalgamação). Por outro, por via da disseminação pelo território nacional das formas oriundas dos centros produtivos de maior pujança econômica (Sudeste, principalmente o eixo Rio-SP), que concentravam os meios materiais de divulgação, notadamente o rádio e a indústria fonográfica, nos primórdios. Destarte, o que a partir de agora designaremos música popular brasileira, exprime esta acepção restrita, que normalmente expressa formas musicais que incorporam elementos da tradição regional, mas que somados a outros de uma linguagem comum nacional, vão constituir uma expressão cultural capaz de ser assimilada em diferentes pontos do país. Dito de outra forma, e de maneira um tanto simplista, essa música popular engendra o “nacional”, a partir da dialética recorrente entre o particular e o universal.

A idéia de brasilidade foi forjada a partir da cultura dos indivíduos comuns do povo brasileiro e traduz essa forma nossa toda particular de ser e estar no mundo, reconhecida em todas as partes do mundo. É claro em muitíssimos autores brasileiros desde o século XIX que a elite sócio-econômica não se reconhece nesse jeito de ser. Suas aspirações, suas referências, seus valores são importados, vêm dalhures e negam expressamente a originalidade, a significação e a importância dessa cultura nativa. A idéia de pertencimento a uma nação foi, pois, forjada a partir das classes populares, que dela se valeram, desde há muito, como uma força aglutinadora, de resistência. Por isso insisto no reconhecimento da verdadeira importância da dimensão cultural na vida do povo e da nação. Esse processo de constante mediação é o que permite que as relações sociais se processem baseadas na integração racional pela via do entendimento entre os indivíduos, e não de acordo com as estruturas formais de mediação que tendem a gerar relações reificadas, marcadas pela opressão. Assim é que podemos situar a música popular no Brasil exercendo, no âmbito nacional, o mesmo papel que as manifestações tradicionais no seio de suas comunidades de origem, qual seja o de contribuir dialeticamente para a ampliação do universo significativo comum onde vai se construir a idéia e o sentimento de “povo brasileiro”.

[continua]