sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Um dia de rei

Daniel Santos e Noca da Portela


Eu fiquei emocionado
Em ver minha escola
Com meu samba desfilar
Já vinha clareando o dia
Minha escola em euforia
Fazia a platéia vibrar
Não sei se chorava ou sorria
Era tanta alegria
Que a batida do meu coração
Se igualava ao compasso da harmonia
No mundo da fantasia
Eu fui rei por um dia

E findou o carnaval
Tudo voltou ao normal
Terminou o meu reinado
Mas o meu nome
Ficou marcado
Pelo povo aclamado
E agradeço ao meu samba...

[para Bruno Ribeiro]

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Cinzas

Então da poesia fez-se a vida
explodida nas possibilidades reinventadas
E a Incerteza imperou no fluido
Tríduo em que tudo brota
de outra razão

E então do dado fez-se o nada
no Interstício todo prenhe de volúpias
de vir

O horror deste dia não mora no silêncio:
o coração ainda banzeia de melodias rodopiadas;
os confetes despedaçam-se aos poucos da alma
E mesmo guardada a fantasia exalará auspícios

A tristeza não cinzenta de saudade:
a Colombina ainda esparge seu perfumoso delírio
E nunca houve um tão Pierrô
Engolido pela lágrima única e própria

As náuseas quartas habitam a realidade
furiosa de certezas.
Vomitam-se reticências sobre as cinzas
de um possível que morre
Mesmo.


Nota: publicado originalmente em 11 de fevereiro de 2005

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Até quarta-feira


E enfim é chegada a hora, uma vez mais, de arrastarmos pelas ruas nossas solidões, do esforço - a cada ano maior - em disfarçar a lágrima sob a máscara. Os joelhos, mais cansados, de novo terão de suportar meu corpo, mais gordo e mais pesado, de um fardo de dores e tristezas e medos. As sapatilhas ainda mais rotas, de tanta lama de tanta estrada, sofrerão novamente para me conduzir por uma jornada errante à procura do que a gente toda julga evidente, mas, em verdade, a cada dia mais se esgueira pelas vielas estreitas e becos recônditos.

Porque o Carnaval, senhores, não é isso que está aí jazendo sob os olhos. Por mais que nos regozijemos, por tanto que nos tenhamos para isso empenhado, não é possível nos deixarmos enganar tão facilmente! Assim eles querem, assim eles agem. Querem nos fazer crer que vencemos, que se renderam; que as ruas tomadas de gente e de música são a coroa da nossa vitória. Mas posso eu acreditar num Carnaval que não seja negação? Que se tenha sob tantas formas oficializado, vá lá! Transformou-se, aqui e ali, em coisas outras que guardam, indiscutivelmente, parte da beleza e força de sua origem popular, a despeito de não serem mais o Grande Carnaval! Este, ao contrário, continua tendo o poder imenso e perfeitamente ordenado (de uma ordem outra, por certo) de transformar e subverter. E por isso não se deixa colher em qualquer esquina repleta de barulho e animação. Refugia-se nos pequenos gestos de gentileza, na cumplicidade dançante, nos sorrisos envelhecidos.

Envelhecidos, sim, porque não posso crer num Carnaval que seja jovem! Já o foi, quando a juventude, recolhida à sua devida condição observante, não era mais que um grande ímpeto reprimido de vozes e humores. Mas não pode mais sê-lo, quando tudo quer se ditar pelas diretrizes da vitalidade, da disposição, da boa saúde. Pois não é o Carnaval o filho dileto da pulsão de morte? Poderia um tamanho caudal, a movimentar tantas comportas, senão pela força do represamento?

Ouço a entrevista de uma cantora que anda na moda: “Vou para o Rio, desfilar na Portela e no Cordão da Bola Preta”. Temo pelo Carnaval toda vez que se põe a reafirmar os padrões que, a fórceps, nos governam. Quando se rende desmedidamente às exigências da oficialidade ou do padrão “civilizado”. Rezo pelo Carnaval, quando percebo que toda nossa admiração pelos pioneiros que plantaram as sementes dessa árvore frondosa não foi capaz de nos transmitir sua coragem de enfrentar a repressão, seu destemor de desafiar a ordem constituída. Choro pelo Carnaval que não prescinde do carro de som, da autorização da prefeitura e do cordão de isolamento.

E chorarei e rezarei e temerei ainda mais e de novo - e sempre -, mas só a partir da quarta-feira. Que agora não são mais horas, não há mais tempo para depravações. Havemos de nos perder na multidão, a cantar um samba do Elton e do Hermínio:

Vou buscar aquilo que foi meu
E que no mundo se perdeu
Qual folhas que o vento soprou no ar...
Ter a mesma paz de antigamente
Sair cantando por cantar
Qualquer canção sob qualquer luar


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Está inteiramente desvirtuada a coreografia dos mestres-salas

Jota Efegê





O mestre-sala, antes denominado baliza, era uma das figuras de destaque nos ranchos. E continua sendo. As embaixadas, os grupos de sambistas precedidos de suas baianas no reboleio cadenciado ao ritmo de um conjunto de percussão que, evoluindo, vieram a se designar escolas e, hoje, faustosamente, são a principal atração do Carnaval carioca (salvo melhor análise, talvez a única), não o incluíam em seus cortejos.

A Deixa Falar, tida e havida como primeira escola de samba, só incorporou o personagem do mestre-sala (que foi o Benedecto Trindade) quando tentou se tornar em rancho e fez um único e decepcionante desfile.

Numa reportagem publicada n'O Globo, em 21 de maio de 1973, quando da morte de Maçu (Marcelino José Claudino), que havia acontecido a oito do mesmo mês, no depoimento exato, preciso do Cartola, do Carlos Cachaça e outros iniciadores da Escola de Samba Estação Primeira, do Morro da Mangueira, foi afirmado ter sido ele, o velho Maçu, quem introduziu o mestre-sala nas escolas de samba e quem também primeiro o figurou. Aprendeu com o famoso Hilário Jovio Ferrreira (Lalau de Ouro), Getúli Marinho (Amor), Maria Adamastor, Theodoro (Massada) e outros, todos peritos na coreografia com que esbanjando elegância em filigranas e arabescos conduzem a porta-estandarte carregando seu pequeno e delicado estandarte.

Personagem que nos ranchos sempre se apresentava elegantemente trajada como figura destacada, ou principal, do enredo, calçando sapatos de salto alto, cabeleira empoada e, na mão, um lenço alvo, seguro displicentemente, ou, se preferia, um delicado leque com que abanava graciosamente a porta-bandeira, seu porte, sua linha de fidalguia, sugeria uma figura buscada em qualquer corte, lembrava uma figura palaciana. A sua dança, a evolução coreográfica feitas ao ritmos das bonitas e pomposas marchas que davam cadência ao desfile dos ranchos (Ameno Resedá, Flor do Abacate, Lírio do Amor, Recreio das Flores e seus coirmãos) era sóbria, de finura sempre observada.

Os mestres-salas de agora, os que seguindo a trilha do mangueirense Maçu, o pioneiro, estão ao lado das porta-bandeiras e são vistos em todas as escolas de samba, ainda capricham no vestuário, ainda ostentam vistosas perucas, calçam sapatos delicados, mantém com a melhor observância o personagem que o sempre lembrado Hilário Jovino Ferreira trouxe como figura de destaque dos graciosos ranchos de sua terra, a Bahia, e lançou-os no Carnaval de Sebastianópolis integrando-se em vários deles: A Jardineira, Filha da Jardineira (lembrar “Ó, Jardineira, por que estás tão triste?”...), Ameno Resedá, Reino das Magnólias, Riso Leal, e mais alguns.

Fugiram, porém, da elegante e discreta coreografia que os antigos mestres-salas dos ranchos, os seguidores do estilo do professor Hilário, exibiram ufanosamente nos desfiles da avenida Rio Branco conduzindo suas bonitas porta-estandartes. Nenhum deles, da antiga estirpe (Getúlio Marinho, Theodoro, João Paiva, Olympio, Piraquê, Bull-Dog, João Borodó e Camarão, citados no caso), iam além de desenhos coreográficos. Eram, apenas, passos semelhantes aos de um balé, discretos, mas que na leveza da sua execução provocavam aplausos, arrancavam palmas.

As evoluções acrobáticas de agora, a coreografia desenvolta, espetacular, compromete a elegância do mestre-sala, não é condicionante com o seu vestir. Embora seja aceita nos concursos, nas competições nas quais as escolas de samba disputam prêmios e eles, os mestres-salas, em muitos desses certames são a atração, são o realce, tal coreografia que executam com predominância de lances acrobáticos distanciou-se, e muito, do que mestre Hilário ensinou a seus alunos.

(in Figuras e coisas do Carnaval carioca, Rio deJaneiro: Funarte, 1982, pp 270-272. Publicado originalmente em O Globo, edição de 02 de fevereiro de 1979)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Marcha do Ó

Ildo Silva e Fernando Szegeri


Toda essa gente espalhada na Cidade
Ouve o chamado dedilhado no bordão
Desperta do torpor da sobriedade
por um canto de verdade a ecoar no coração
Se ajunta numa imensa fantasia
tecida de melodias, costurada num refrão:

Eu quero mesmo me perder nesse meu canto
onde a dor pra longe espanto
e jamais me sinto só
Se quer receita para ter felicidade
E afogar toda saudade
Não tem nada como o Ó

E então de terno chegam arlequins
Pierrôs de calça jeans
Colombinas de além-mar
Em braços no papel de serpentinas
Desastradas bailarinas
Se desmancham a sambar
Boêmios conduzindo o estandarte
Se entregam à sua arte
De beber e conversar

Choro rasgado rompe o peito dessa gente
Inimigos do batente rebatendo todo mal
Ouço um pau d'água cochichando meio atônito
Em tom afromacarrônico em louvor ao Carnaval

Se quer receita para ter felicidade
E afogar toda saudade
Como o Ó não tem igual

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Pierrô


Ele nasceu italiano, lá pelos mil e quinhentos, entre os tantos personagens da Commedia del'Arte, título genérico pelo qual ficaram conhecidas inúmeras pantomimas burlescas e itinerantes, de enredos variados sobre uma gama de personagens arquetípicos mais ou menos constantes, caricatamente representativos da tessitura social renascentista. Freqüentemente descrito como o servo correto, leal e um tanto ingênuo, em oposição à rebeldia malandra e um tanto calhorda dos também servos arlequim e colombina, não era contado entre os personagens principais, nem ao menos entre os mais interessantes ou complexos. Destituído da malícia e picardia de seus pares, sem as aberrações morais caricatas dos velhacos pantaleão, capitão, doutor, briguela entre outros, petrolino ia aparecendo aqui e ali no exercício de seu papel coadjuvante.

O italiano petrolino apresenta-se como o francês pierrot possivelmente a partir do Don Juan de Molière, mas só tomará os contornos solitário e melancólico no florescer do romântico século XIX, quando o ator franco-boêmio Jean-Gaspar Debureau reelabora e incorpora definitivamente o personagem (como fará Chaplin com seu Carlitos, quase um século depois), inclusive fixando as características físicas e morais que povoam nosso imaginário até os dias que correm.

É claro que esse ingênuo sentimentalismo, aliado à condição de preterido, de perdedor potencial, bem como à sua aura um tanto ausente e avoada, seria um prato cheio para a atávica melancolia de nosso coração tupiniquim, que imediatamente incorpora o triste palhaço com a força e a representatividade que não possuia na origem. O grande Nelson Rodrigues, que talvez como ninguém mais tenha sabido dissecar o caráter do brasileiro de seu tempo, conhecedor maior de nossa alma de vira-latas, sintetizou com a maestria verbal que lhe era característica:

”[Sou] o sujeito mais romântico que alguém já viu. Desde garotinho sonho com o amor eterno. Na minha infância profunda, os casais não se separavam. Havia brigas, agressões de parte a parte, insultos pesadíssimos, mas o casal não se separava. A separação era uma tragédia. Em último caso, a mulher apelava para o adultério. Sou romântico como um pierrô suburbano”.

(in: RODRIGUES, Nelson. Entrevista concedida a VAN STEEN, Edla. Viver e escrever. Vol.3./ 2. ed. Porto Alegre: L&PM, 2008. apud Aeronauta)

Romântico, ingênuo, sentimental, avoado e trágico. Lembra alguém?


***

Sabemos que nada mesmo há no espírito brasileiro que não vá desaguar inapelavelmente no Carnaval! Olha lá o pierrô, acompanhado de colombina e arlequim, espalhando-se pelos bailes, préstitos e concursos de fantasias por toda a imensidão desse torrão tropical. Mas é claro que nos estamos dando a liberdade de inverter poeticamente os fatos. A transposição se processa possivelmente a partir do carnaval veneziano, onde as máscaras de baile são herdeiras diretas da tradição teatral que lança suas raízes até os tempos qinhentistas da Commedia del'Arte. Desde os salões brasileiros, onde a elite tupiniquim a partir do séc. XIX revela especial dedicação em macaquear os hábitos sociais da burguesia européia, é que as tradicionais figuras vão ganhar as ruas e o coração do povo. Ainda que entre o céu e a terra haja tanta coisa mais...

O fato é que se Debureau encarnou tão francesamente o personagem burlesco da renascença, nós cá também tivemos quem sintetizasse nosso definitivo, nosso emblemático pierrô. Atendia, na vida civil, por Zacharias do Rego Monteiro, irmão do conhecido radialista Gastão do Rego Monteiro, locutor celebrizado na Rádio Record e Rádio Clube do Brasil. No intuito de substituir o sisudo e tão pouco carnavalesco smoking, a fim de quebrar a formalidade dos bailes do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o carioquíssimo folião exibiu seu primeiro pierrô no carnaval de 1950. A novidade e o impacto da beleza dos costumes que desfilava rapidamente celebrizaram sua figura como identificada ao tradicionalíssimo clown saltimbanco. Dos bailes do Municipal, Zacharias passou, anos depois, a reinar soberano nos concursos de fantasias, ao lado dos não menos incensados Clovis Bornay e Evandro de Castro Lima. Ao contrário de seus pares, quis antecipar-se à decadência física, trajando seu último pierrô durante os dias de folia do ano da graça de 1965. Muito antes do ocaso dos famosos certames, entre os quais se destacaram o do próprio Teatro Municipal, os do Hotel Glória e do Clube Federal, já se houvera retirado oficialmente das passarelas.

Afastado dos desfiles, mas não do ti-ti-ti do raisoçáite carioca, até sua morte em 1986, o eterno pierrô manteve-se ativo, como uma espécie de “consultor” para assuntos de carnaval e relações públicas de uma famosa cadeia de joalherias. Virava e mexia, aparecia um pitaco seu nas páginas do Cruzeiro, ou da Manchete, sucedâneos sessentistas das atuais (?) caras e vejas (a minúscula é proposital: pioraram as revistas ou piorou o país?). Sua última declaração pública conhecida: “Apesar de carnavalesco, sou tristonho e sonhador por natureza”. Pudera haver outro assim tão... pierrô?



Nota: Ora direis que esta página não se costuma dedicar a personagens das colunas sociais. É fato. A homenagem singela que aqui prestamos ao famoso carnavalesco justificar-se-ia tão só pelo meu pessoal fascínio (talvez atávico) pela figura do pierrô, que encarna tão poeticamente a antítese necessária da alegria desmesurada que cada vez mais se procura fingir nos dias de Momo. O Carnaval pertence por definição aos tristes e aos melancólicos, aos oprimidos e impotentes, e não é senão o grito máximo de sua miserável condição. Aqueloutros – os “alegres” - simplesmente não entenderam nada. De mais a mais, Zacharias foi uma figura emblemática da história do Carnaval da minha mui amada cidade de São Sebastião, que empresta nome a este canto, ainda que não seja da faceta da festa que mais nos seduza, que nos empolgue. Os desfiles de fantasia e os bailes elegantes são peças que compõem o mosaico complexo e fascinante do Carnaval, juntamente com as escolas de samba, grandes sociedades, ranchos etc., independentemente do papel que ocupem na sua grandeza, dignidade e potencial libertário.

Mas a verdadeira e mais poderosa razão desta lembrança é que Zacharias era filho de João Batista do Rego Monteiro; este, por sua vez, filho de Jesuíno Rodolfo do Rego Monteiro e Maria Inácia Fernandes de Oliveira, que vêm a ser bisavós de minha avó materna, meus tataravós, portanto. Daí, que o que o imortal pierrô seja meu primo em sétimo grau. Feliz o homem que conhece o nome de seu pai, de seu avô e de seu bisavô; para saber que nome dar a seus filhos, netos e bisnetos.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Carnaval (II)



Então será assim um tão Carnaval
De repente liberto daqueles
uns quatro dias
Liberto mesmo dos dias todos
E das todas vidas - e lidas
E culpas
Num Carnaval que haverá

Só no espaço
Só no encontro

E seremos uns só travestidos
Das fantasias que a marra tanta
Teimamos
Que a tanta incúria
Deixamos

Sós no espaço
Sós no esconso

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Sentinela


Uma tarde abafada de 31 de dezembro, à beira de um lacunoso mar de pequenos pesqueiros coloridos, só se pode aplacar satisfatoriamente à base de muita conversa fiada e alguma cerveja. De repente alguém emerge da modorra e a mudeza se quebra por uma voz invisível, naufragada em franjas de uma grande rede branca:

- Quem será que ganhou a São Silvestre?

O riso, muito mais que a Filosofia, é a verdadeira medida do espanto! Um riso assim tão geral quanto frouxo, a denunciar a falta de perspectiva daquela dúvida tão deslocada no tempo-espaço. Eu mesmo, escolado na faina de tourear canoas dissidentes, achei graça da desimportância da informação esperada.

Mas não era assim, na verdade, na São Paulo de antigamente. A corrida que ficou famosa pelo nome do santo que se celebra na última féria de dezembro era um acontecimento, uma festa, pra um povo de uma cidade tão despojada de motivos para celebrar. Na falta das ondas para se pular, de batuques para Iemanjá, como se podia divertir, no fim de ano, a gente operária dos bairros centrais de uma cidade garoenta que já então se acinzentava? Concentrar-se ao longo do trajeto, interessar-se pelos concorrentes, torcer até, era uma maneira do paulistano arrumar assunto para integrar os bebentes e motivo para não ficar em casa. Para as “famílias”, o remédio para não ficar fora do assunto do dia seguinte era acompanhar as transmissões preto-e-brancas, cheias de chuviscos (não estou com paciência para explicar para a geração teveacabo o que eram os chuviscos...), da indefectível TV Gazeta, vejam vocês...

Depois passaram a corrida para a tarde - porque afinal as coisas tem que ir para seus devidos lugares, e o canal de televisão que põe dinheiro para a prova não morrer (que não é mais a TV Gazeta, vocês já devem imaginar...) tem seus interesses em faustões e xuxas, não se pode deter por uns ítalo-nordestinos bebuns e desocupados – e acabou-se o sentido e a graça da história.

Mas não era da São Silvestre que eu queria falar. A enrolação do intróito foi só para recomendar, uma vez mais e vivíssimamente, a leitura do indispensável blogue Anhangüera (com trema, por coerência), em que meu irmão Arthur Favela Tirone desfila um sem número de histórias comoventes de uma cidade – particularizada num pedaço tão eloqüente, a sua velha Barra Funda – que insiste em resistir e respirar, a despeito de toda lava que por sobre ela vomitam incessantemente os vulcões da mercantilização, do individualismo, da banalidade. Como esta recente, justamente sobre a corrida famosa, que li nos primeiros dias deste ano, tamanhamente vexado da minha dessintonizada irreverência de dias antes. Uma narrativa regada a melancolia e sensibilidade, fruto de uma atenção cuidadosa com as coisas importantes e verdadeiras da vida.

E para falar dele, do homem que não precisa de areia, nem de mar: sua praia é o México! A este sentinela do espírito mais recôndito – mas pulsante! - desta digna e aviltada cidade, neste dia, meu melhor brinde. Bem como ao homem com quem passou inacreditáveis nove meses abraçado, e que nasceu com nome de anjo.


[para Mimi e Denise]

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Simplesmente Denise


“Denise era o nome de uma ótima cantora que eu gostava muito de ouvir nos finais da década de 80 em bares saudosos como o Clube do Choro e o Bar da Virada, muitas vezes em companhia do não menos saudoso Jorge Costa, um dos melhores e menos lembrados compositores do samba de São Paulo (embora fosse, de origem, alagoano e tivesse sido criado na Mangueira). Bela voz, com aquela bossa e versatilidade bem “noite”, que lhe permitiam transitar sem sustos de um samba-canção bem “alaíde” até um sacolejo mais “alcione”, passando por “ademildes” e “beths”.
Ano passado descubro uma outra Denise, assinalando presença marcante numa das faixas do primeiro CD dos rapazes do Quinteto em Branco e Preto, dedicada aos sambas da Velha Guarda do Camisa Verde-e-Branco. Soube também, na época que ela comandava a função num local onde se reuniam vários dos integrantes da ala mais nobre da escola da Barra Funda (sobre o qual vou escrever para vocês na próxima semana). Mas minha maior e melhor surpresa foi descobrir, noutro dia, que as duas Denises são, na verdade... a mesma! E pela canja que ouvi na oportunidade, sem falar na própria gravação citada, parece que está mesmo em plena forma.”


Escrevi este texto em junho de 2001, quando editava a seção paulistana das notícias da Agenda do Samba & Choro. Na ocasião, ninguém menos que mestre Nei Lopes tascou lá na Agenda o seguinte comentário: “Denise é uma das maiores cantoras de samba do momento. E já está mais do que na hora de ela gravar um disco só dela. Alô, gravadoras descompromissadas com o pop e com o jabá!!!!!”. Passados, pois, oito anos, o primeiro disco dessa estupenda intérprete finalmente foi gravado e só está esperando a mixagem para sair. A grande Denise Camargo confidenciou semana passada à minha querida Railídia, outra grande intérprete do samba de São Paulo, que a única coisa com que ainda sonhava era poder ver seu tão esperado trabalho finalmente na rua. Talvez uma estranha premonição. Na madrugada de sexta-feira para sábado, depois de se apresentar numa roda de samba na quadra do Camisa Verde-e-Branco, na festa de escolha dos novos Cidadãos Samba da cidade, Denise sofreu um enfarte fulminante. Morreu, na flor de seus 59 anos, como todo sambista aspira: “numa batucada de bamba, na cadência bonita do samba”.

Convivi com ela em dois períodos distintos das nossas vidas. Na época citada no trecho acima, do final dos anos 80 até meados de 1994, quando a morte de Jorge Costa, o fechamento de alguns importantes redutos do samba e outras cositas que não merecem vir à baila, começaram a afastar-me do ambiente das rodas e escolas. A mocidade era risonha e franca, e nós bebíamos, cantávamos, falávamos de samba e da vida, como convém a bons companheiros de noite. Anos depois, reaproximado das coisas e da gente do samba, reencontramo-nos por ocasião da apresentação a que a notícia se referia. Só então comecei a conhecer pra valer a grandeza desse ser humano excepcional e sua importância na história das escolas de samba da cidade de São Paulo. Vi poucas pessoas tão unanimemente queridas; sobretudo num ambiente onde a competição, a rivalidade e - por que não dizer? – as vaidades muitas vezes sobrepõe-se ao valor pessoal de um artista. Tive a honra de tornar-me seu amigo, conhecer sua belíssima família, sua casa. Nunca mais deixamos de nos encontrar, numa roda aqui, num evento ali, sem os mesmos descompromissos notívagos do passado, mas aprofundando um respeito e um bem-querer mútuos que me orgulham como poucas coisas nesta vida.

Denise foi uma intérprete excepcional, uma amiga querida, um baluarte do samba paulistano. Comandou históricas reuniões de sambistas, como no Em cima da hora, no Bairro do Limão, e o “angu da Denise”, no tradicional “Cantinho do Peruche”. Integrava a Velha Guarda de sua gloriosa Unidos do Peruche, escola das mais queridas e respeitadas nesse chão de Piratininga. As traiçoeiras águas de janeiro e fevereiro, que são misteriosamente pródigas em carregar sambistas para a grande batucada que nunca termina, já tinham-nos levado este ano o grande Xangô da Mangueira, Casemiro da Cuíca, Dona Edith e a queridíssima Doca. Agora, foi-se a nossa amada Denise. Choram Portela, Estação Primeira, Peruche. Chora o Camisa Verde-e-Branco, Mocidade Alegre, Unidos de Vila Maria, Rosas de Ouro. Caudalosos prantos correram pelas ruas da cidade, neste sábado, para desaguar na quadra histórica, ali na Ponte do Limão. Os inúmeros bambas que ali estiveram puderam reverenciar a memória de Denise num grande pagode-homenagem, como ela sempre quis que fosse. Quase podíamos ouvir no meio da noite quente sua voz inconfundível a nos consolar, no samba de Ideval e Zelão que ela consagrou pelos quatro cantos da cidade:

A lua vem surgindo
sereno do céu vem caindo:
É madrugada!
Eu já afinei a minha viola
peguei paletó vou me embora
pra batucada!
É lá que eu esqueço a saudade
e sonho com a felicidade
que eu desejei
E canto no meio da moçada
Esqueço aquela malvada
que eu tanto amei
Não sei por quê
Não sei por quê
Felicidade dura pouco para mim
Não sei por quê
Tristeza so no samba é que tem fim...