sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

“Eu tenho é medo do carnaval de hoje”


A frase que está no título deste texto não é de um pastor evangélico, da presidente da liga das senhoras, nem do CONSEG (pra quem não é de São Paulo, nem se ocupe em saber o que é...) ou da associação de moradores do meu bairro. É do gênio da raça, do grande entendedor do Brasil; do compositor, poeta e escritor Nei Lopes. Ele mesmo. E se explica: mestre Nei se refere à grande transformação que fez do Carnaval de rua, que era o reino da espontaneidade, da gratuidade, do encontro, um privilegiado espaço de reprodução da lógica mesma do dinheiro, do negócio, do poder. Nada diferente do que ocorreu com o carnaval das escolas de samba, com o futebol, com os butiquins etc. Etc. Etc. Mas nada também que tenha determinado até agora que não houvesse mais os butiquins libertadores dos encontros improváveis, o futebol sonhador das peladas a pé descalço, os instantes de magia e transfiguração pelas avenidas tantas pelo país afora. E ouso sonhar que não determinará também a morte do Carnaval em que a gente acredita. E espera a cada ano. Ao qual a gente se entrega.

E esse Carnaval - como já bem disse meu para sempre fraterno-irmão Luiz Antonio Simas – é da espontaneidade e da subversão. Ou da subversão pela espontaneidade. Porque o que se subverte, na verdade, é o dia a dia das preordenações , da previsibilidade, dos formalismos, onde a vida é mediada por soluções antecipadamente delineadas, senão em seus conteúdos, ao menos em suas formas. Com os resultados que a gente vê... A hierarquia, o poder de ditar as regras, os lugares predefinidos são a sustentação e a expressão mais visível dessa ordem a ser subvertida. A lógica da eficiência, o cálculo de meios e finalidades e a técnica, sua filha dileta, são seu modus operandi por excelência. Por isso essa ordem não resiste e se quebra pelo gesto sem finalidade, pela brincadeira que se esgota nela mesma, pelo abandono ao “seja o que Deus quiser”; pelo descaminho, pela total imprevisão, pelas formas nunca acabadas que se reinventam a todos os instantes, pelas soluções inusitadas, pelas estéticas aberrantes, pelas inversões dos papéis.

Por isso o “bloco do eu-sozinho” é a celula mater desses dias, encarnação daquele que sai de casa sabendo “apenas que vai para a rua imolar-se nos blocos e cordões, receber a extrema-unção com água benta de teor alcoólico e morrer até a Quarta-Feira de Cinzas”, sem itinerário, sem compromisso, sem programação. E o bloco de sujo é sua perfeita correspondente coletiva, sendo nada mais que um ajuntamento de “eu-sozinhos” que se encontram no acaso, no átimo, na fresta, no diáfano. Esses são filhos legítimos e diretos do velho entrudo. Tudo o que demanda algum grau de planejamento, organização, ou mesmo intencionalidades outras, se desvia desse sentido originalíssimo.

Quem vai para o carnaval PARA beber, ou PARA paquerar, não é folião. Não pertencem à esfera sagrada do Carnaval os “blocos” que saem para defender ideias, bandeiras, ou reivindicar isso e aquilo. Mesmo os folguedos todos que povoaram os carnavais Brasil afora, ouso dizer – malgrado o respeito quase devocional que já nutri pelas escolas de samba e ainda nutro, por exemplo, pelo maracatu rural de Pernambuco - já são corruptelas desse espírito fundamental. Populares, indubitavelmente, subversores eles mesmos, claro, pela encarnação da ludicidade, da teatralidade, da desconstrução-reinvenção da vida. Mas, via de regra, apenas identificados a posteriori com o Carnaval, por aproveitarem o relaxamento da vigilância e da repressão durante esses dias, expressões que foram e são de negros, índios, pobres, marginalizados, despossuídos, os excluídos todos da festa oficial.

E assim também, obviamente, nossos atuais blocos de rua serão também simulacros apartados dessa entrega “exusíaca” total (“quem tem Exu não precisa de Dionísio”). Mas são as nossas tentativas possíveis, humildes, desesperadas, de reconstrução dessas possibilidades, dessas não-formas de rebrincarmos o nosso Carnaval, a despeito, contra ou até “aproveitando” a onda do oba-oba geral. Por isso o carnaval de que Mestre Nei tem medo – e eu pavor! - vai lá em cima minúscula. Por isso, meus amigos, aproxima-se o dia mais importante, mais esperado do ano, que para mim já foi o sábado de abertura do Carnaval, hoje é o domingo que o antecede. Mudou o dia, mudou o lugar, mudaram os jeitos, mas não o significado. O tanto que posso morrer, morrerei; nem mais, nem menos. Essa é a minha jura de folião.

E porque não posso por decreto impor a tolerância àqueles que continuam a apostar nos moralismos como fórmulas de salvar os outros; porque não posso apartar do poder todos os que dele abusam em seus exclusivos interesses; porque não posso abrir a forceps os olhos, mãos e braços de uma sempiterna casa-grande aparentemente determinada a morrer abraçada aos seus anéis; porque não posso banir do nosso convívio veículos de opinião que são a encarnação mal-disfarçada dos mais torpes, sórdidos interesses; porque não posso estrangular o sujeito que estaciona, por desleixo ou prepotência, o seu carro ocupando duas vagas; porque não posso resgatar da mão dos usurpadores um joguinho só que seja do meu time, “assim como era no princípio”... Para eles e por eles todos – moralistas, poderosos, proprietários, gângsters, usurpadores, egocêntricos - oferecerei mais uma vez, a partir de domingo, vestido de sereia ou de Emília, o meu particular holocausto. Afirmação singela, mas peremptória, da possibilidade em que eu acredito e que nessas terras foi plantada.


Evoé!