sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Cura-te a ti mesmo!


O Ministério Público e a transformação do futebol em estado de exceção à normalidade democrática


A gente fala de sentimentos, eles não entendem. A gente fala de cultura, eles arvoram seus preconceitos, seu desprezo por tudo que não reproduza seu padrão de pensamento de classe dominante. A gente fala de política, esbarra em seus autoritarismos, verborragias, empáfias e lugares comuns contruídos em anos de imbecilização das massas. Vamos, pois, falar de Direito.

A regra político-jutídica que nos dias atuais grassa na imensa maioria das nações e sociedades ditas democráticas é a que se convencionou chamar “Estado de Direito”. Basicamente se define pela subsunção absoluta do exercício do poder estatal a um conjunto de regras anteriormente definidas e conhecidas, submetidas todas a uma norma fundante e fundamental. Entre nós, essa norma superior que serve de suporte a todas as demais é a Constituição. E em nossa Lei Maior a máxima consubstanciação desse sistema que visa tanto o controle político sobre a ação do estado, como a preservação das liberdades individuais, tem lugar no chamado “princípio da legalidade”, segundo o qual apenas e tão somente as leis aprovadas pelo Congresso Nacional e demais casas legislativas (Assembléias Legislativas e Câmaras de Vereadores) é que definem o que os cidadãos e o Estado podem ou não podem fazer. Entretanto, o alcance dessa máxima em relação aos cidadãos em geral tem um sentido, por assim dizer, oposto ao que tem em relação à atuação do Estado por meio de seus agentes. Dito de forma prática, enquanto o particular pode fazer qualquer coisa que a lei não proíba, os agentes estatais apenas e tão somente podem fazer aquilo que é previsto estrita e expressamente pela lei.

No estudo da teoria do estado moderno é também conhecida a figura do assim chamado “estado de exceção”, que alguns tendem, didaticamente, a contrapor à noção de “Estado de Direito”, por caracterizar uma situação em que a atuação estatal não se pauta estritamente pela lei, mas está balizada por parâmetros outros. Essa contraposição, entretanto, não é precisa. Há que se distinguir, basicamente, por um lado, as hipóteses em que o próprio sistema normativo admite uma flexibilização das formalidades legais para o atendimento de situações emergenciais, tais como as decorrentes de grandes catástrofes climáticas, de invasão do território por forças estrangeiras, ou outras ameaças à própria existência do estado, suas instituições e poderes constituídos. Nesse caso, é o ordenamento normativo que prevê a supressão momentânea de determinadas formalidades para que o parâmetro da atuação estatal passe a ser a resposta pronta e eficiente às demandas que envolvam atuações rápidas e distintas do padrão. Essas hipóteses devem ser precisamente descritas e tem tempo de duração absolutamente restrito à restauração da normalidade; a adequação aos objetivos que as ensejam, bem como os eventuais excessos cometidos, submetem-se ao controle das instituições democráticas como os parlamentos, o Poder Judiciário etc. Por outro lado, situação completamente diversa se dá quando a normalidade do funcionamento do Estado de Direito fica comprometida fora das hipóteses previstas no ordenamento normativo, como no caso extremo do golpe de estado, ou quando há comprometimento grave e sistemático do funcionamento institucional, com o surgimento de poderes “paralelos”. Nesses casos, como parece claro, os instrumentos de ação do Estado de Direito mostram-se incapazes de promover a restauração da normalidade jurídico-democrática, e os parâmetros para o exercício do poder estatal migram para fora do sistema, seja para a vontade pessoal do ditador, seja para o exercício da violência por ela mesma, ou para interesses de grupos para-estatais (organizações criminosas, movimentos políticos extremistas etc.) e por aí vai.

Por ocasião da realização da Copa do Mundo no Brasil, muitas vozes se ergueram para alertar sobre o perigo representado por concessões relativamente à prevalência de determinadas regras jurídicas vigentes em relação aos interesses organizacionais envolvidos, com riscos de se erigirem em verdadeiras situações de exceção. Desde regras especiais para a aquisição de bens e serviços pelo setor público (que normalmente obedece a rígidos parâmetros estabelecidos pela Lei de Licitações) até as denúncias de desapropriações e remoções para a realização de obras, passando pela restrição à liberdade de expressão e à circulação de particulares em locais e dias de jogos, muitos aspectos deram a sensação que vigia em relação a tudo o que se referisse ao mega-evento esportivo um conjunto de ordenações “paralelo”, ao largo e muitas vezes por sobre os direitos, garantias e prerrogativas normalmente invocáveis pelos cidadãos nacionais e/ou oponíveis à ação estatal. O que talvez ignorem as tão bem intencionadas vozes é que aqueles que vivem o dia a dia dos eventos futebolísticos no Estado de São Paulo há muitíssimo tempo (dezenove anos, para ser mais exato) experimentam uma inusitada e teratológica situação de exceção, onde as estruturas e princípios que regem o funcionamento de nossa sociedade pretensamente democrática parecem ceder lugar a imperativos “práticos”, clamores passionais, idiossincrasias e preconceitos de todas as ordens (é exemplar, nesse diapasão, a justificativa que rolou solta na boca de autoridades e jornalistas para a liberação da venda de bebidas alcoólicas nos estádios durante a Copa: “trata-se de outro público”). Incitado por uma fatia da imprensa esportiva que não limita sua atividade à análise opinativa do que acontece dentro das quatro linhas e à cobertura informativa dos acontecimentos que circunscrevem o evento, arvorando-se em púlpito dos mais inconfessáveis sentimentos e interesses, o Ministério Público do Estado de São Paulo passa a coonestar a gradual supressão, no âmbito dos eventos futebolísticos, das liberdades democráticas que lhe incumbe precisamente defender. Mormente quando a projeção alcançada por essa sinistra associação com a já citada imprensa nefasta passou a render dividendos outros, inclusive de natureza eleitoral.

Sob invocações de variadíssimos jaezes, todas de altíssimo grau de subjetividade, a instituição que deveria ser a Fiscal da Lei passa a orquestrar uma série de medidas, ora no âmbito judicial, ora na interferência direta sobre o planejamento das atividades organizacionais (leia-se: policiais), de restrição de direitos e liberdades, que acabou por desaguar num ambiente em que ficou “normal” tolerar a restrição SEM PREVISÃO LEGAL à liberdade de expressão (vide as faixas proibidas, os coros censurados), do direito de ir e vir (do cidadão, por exemplo, que, não tendo o ingresso, não pode se aproximar de um estádio TRANSITANDO A PÉ POR LOGRADOUROS PÚBLICOS), do direito à associação para fins pacíficos e do princípio fundamental de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei. E num ambiente de exceção, onde o parâmetro decisório do que pode e não pode ser feito é deslocado da lei para os “sentimentos” de segurança, tranquilidade, ordem pública etc., não é difícil perceber que acabará por restar à instituição que é incumbida da operacionalidade dos eventos esportivos - a Polícia Militar, normalmente tão ciosa da observância da legalidade estrita – tomar casuisticamente um sem número de decisões sobre onde se possa ou não ficar, o que possa ou não possa ser feito, o que possa ou não ser exprimido , o que possa ou não ser portado (e não estou falando de armas ou entorpecentes: guarda-chuvas, rádios, bengalas – TUDO ISSO EU JÁ VI COM MEUS PRÓPRIOS OLHOS SER EXPROPRIADO na entrada dos estádios paulistas) etc. etc. etc. E quando digo a instituição, leia-se: o indivíduo investido na função de agente estatal, ali naquela hora, naquele lugar. É ao exclusivo arbítrio desse indivíduo que está relegado naquele momento e local o direito do cidadão brasileiro que pretensamente vive sob a égide de um Estado de Direito, com prerrogativas garantidas pela Constituição que o funda e rege.

Pois mais uma vez vem a público um membro do Ministério Público Paulista – esta coluna não conseguiu apurar se e quando será candidato a um cargo eletivo - mais uma vez de carona na enorme atenção despertada em torno da partida que definirá a permanência ou não na elite do futebol nacional de um dos clubes mais populares do Brasil, despejar o seu baú de idiossincrasias e arvorar-se em legislador, tutor e executor de uma norma de exceção que ele pretende vá disciplinar a organização do evento esportivo desse próximo domingo. Sintam o tom “impessoal” desejável de toda autoridade investida de prerrogativas públicas num Estado de Direito: “"Eu particularmente sou contra essa aglomeração no entorno do estádio. Eu prezo por um entorno mais saudável. Eu entendo que pelo fato de estar encravado no centro da cidade, com várias casas e pontos comerciais, atrapalha fazer um círculo de isolamento. Mas eu acho salutar, acho que a gente tem de buscar isso. A gente tem de acabar com isso no entorno.” (o negrito, obviamente, não está no original da matéria; o senhor promotor, estilista do vernáculo que parece ser, presumo deva ter-se valido do conhecido recurso da ênfase pela repetição). EU prezo, EU sou contra, EU entendo, EU acho... A lei??? Ora, a lei... A ilustre autoridade pública não se referiu a ela em nenhum momento! Com o que a lei considera “saudável” ele não parece preocupado, investido que está da capacidade supra-sensível de dizer e interpretar os sentimentos da sociedade! Se a vontade e a percepção do digníssimo membro do Parquet são erigidas em parâmetro da atuação estatal, quem estará preocupado com a lei??? Lá na frente a nossa máxima autoridade do estado de exceção esportivo parece se dar conta do “esquecimento” e apressa-se em citar a lei que, segundo ele, proíbe a venda de bebida alcoólica num entorno de 200m dos estádios. E quanto ao “isolamento”? E quanto a acabar com as “aglomerações”? E quanto à proibição de se aproximar do estádio sem ingresso? E quanto à impossibilidade de se ostentar cartazes de protesto contra os desmandos da polícia? E quanto a levar o seu guarda-chuva para o estádio? ONDE DIABOS ESTÁ A LEI QUE RESPALDA TAIS INTERDIÇÕES AO CIDADÃO COMUM???

O “costume” da torcida se reunir em torno do estádio em dias de jogos “não é visto com bons olhos pelo Ministério Público de São Paulo”, diz a matéria jornalística. Não vou perder meu tempo, obviamente, problematizando a questão acerca do quanto a lei pode ou deve se sobrepor ao costume ou contrariá-lo - isso seria sociologia, coisa de comunista, com a qual as nossas doutas autoridades e nossa preclara imprensa esportiva não desperdiçarão seu precioso (literalmente) tempo. A despeito disso, sinto-me no direito de perguntar: afinal, quem são “os olhos do MPSP”? Porque, diferentemente do que poderia supor um cidadão de boa-fé, não parecem ser os olhos da lei. Perderá tempo quem for buscar nos textos legais, na sua interpretação doutrinária ou jurisprudencial, a definição do que é “tranquilo”, do que é “saudável”, do que “a gente tem que acabar”. O preclaro doutor Paulo Castilho disso já se incumbiu.

(publicado originalmente em 05/12/2014 em Turiassu 1840)

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